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Daniella Marques: Empreendedorismo é saída para abusos contra mulheres

Única executiva à frente de um grande banco brasileiro, chefe da Caixa diz que 'sistema financeiro negligencia a mulher como detentora do poder de consumo'

Oferecimento de Atualizado em 4 jun 2024, 12h21 - Publicado em 2 set 2022, 06h00
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  • Há apenas dois meses no cargo de presidente da Caixa Econômica Federal, Daniella Marques assumiu o posto em meio a uma descomunal tormenta provocada pelas denúncias de assédio sexual e moral feitas contra seu antecessor, Pedro Guimarães. Desde então, vem conduzindo uma rigorosa apuração das denúncias e revisão de condutas e processos na instituição. Ao mesmo tempo, mantém em pleno vapor a operação financeira dos ambiciosos programas sociais do governo como o Auxílio Brasil e linhas de crédito para pequenas empresas, cruciais na estratégia eleitoral do presidente Jair Bolsonaro. Em entrevista a VEJA, concedida em uma passagem pela superintendência do banco em São Paulo, ela afirma que os casos de assédio denunciados na estatal são sintoma de um problema muito maior, que vai das formas mais primitivas de violência contra a mulher até mecanismos mais sutis de discriminação. “Até o mesmo sistema financeiro negligencia a mulher como detentora do poder de consumo”, avalia. Com uma sólida passagem pelo mercado financeiro e próxima ao ministro da Economia Paulo Guedes, de quem foi assessora, Marques, de 42 anos, acredita que um dos caminhos para solucionar o problema é justamente estimular o empreendedorismo feminino como saída da pobreza e inserção mais sólida das mulheres na economia.

    A sua chegada à Caixa se deu depois de denúncias muito graves contra seu antecessor, acusado de assediar funcionárias. Como está sendo o trabalho para mostrar o compromisso do banco com as mulheres? Desde o dia da minha posse procurei mostrar que a violência contra a mulher, infelizmente, é uma realidade no país e vai das formas mais primitivas e perversas até casos que resultam em assédio sexual e moral. A estatística diz que pelo menos metade das mulheres economicamente ativas no Brasil é vítima de algum tipo de assédio, o que requer uma mudança cultural de comportamento no ambiente de trabalho. Em um cenário como esse, acho que a crise acabou se tornando uma oportunidade para o banco.

    Em que sentido? O Brasil é um país continental, você não consegue conscientizar e difundir a informação se não tem capilaridade nacional. Eu me comprometi coma ideia de que a Caixa, além de ser um banco para todos os brasileiros, seria a mãe da causa das mulheres para que a gente mude rapidamente essa situação. É um tema difícil de encarar. Atuamos não só colocando toda a nossa rede a serviço da conscientização e da prevenção contra a discriminação e a violência, mas também como um agente promotor dessa causa, unindo outras redes Brasil afora, incluindo desde empresas como o Banco do Brasil, Ambev, Cyrela, Localiza, Riachuelo, Multiplan e Havan, entidades como o Sebrae e clubes de futebol como Flamengo, Corinthians e Palmeiras. Entretanto, acredito que, para nós, o processo não termina no trabalho de prevenção e conscientização. Esse é um primeiro passo para uma ação mais ampla.

    “Acredito que o empreendedorismo feminino é uma porta de saída do ciclo abusivo. Muitas vezes a mulher permanece vulnerável porque não tem independência financeira”

    E como se desenvolveria essa ação? Acredito que a promoção do empreendedorismo feminino, com todo o impacto econômico-social que gera, é uma porta de saída do ciclo abusivo. Muitas vezes a mulher permanece nessa situação porque não tem independência financeira para se manter e a seus filhos. É por isso que criamos produtos financeiros focados em cuidar de quem mais cuida da família. Em um de nossos programas, chamado Caixa pra Elas, estamos capacitando uma rede de 8 000 embaixadoras e embaixadores que darão o apoio e atendimento direcionado, porque o sistema financeiro hoje negligencia a mulher enquanto detentora do poder de consumo. Eu falo isso pelos números. Todo o setor de propaganda, por exemplo, está direcionado para a mulher, até a propaganda de carro. Mas, em produtos financeiros, previdência, seguros, capitalização e no próprio crédito, a mulher não chega a 35% de nenhum deles. Aqui na Caixa não chega a 5%. Entretanto, temos aqui 72 milhões de clientes mulheres, o que significa um espaço imenso para desenvolver tudo isso.

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    Como a senhora pretende ampliar a relevância dos serviços para essa base tão vasta? A Caixa tem potencial de promover um grande programa de capitalismo popular. Talvez um dos maiores do tipo no mundo. Estamos desenhando e queremos aprofundar a atuação do banco nesse sentido, para que seja o banco do micro e pequeno empreendedor. Estamos fechando uma parceria ampla com a Central Única de Favelas, a Cufa. Vai ser um projeto-piloto, usando a estratégia de relacionamento da Caixa para avançar o empreendedorismo. Também serve como alavanca de crescimento e de construção de renda das famílias, com produtos e serviços exclusivos para mulheres. A Cufa atua hoje em mais de 5 000 comunidades no Brasil e estamos em conversa bem avançada para lançar a parceria agora em setembro. Esse projeto vai servir para a gente entender a dinâmica econômica das favelas com mais profundidade, atuando em todas as dimensões, desde a renegociação de dívida, orientação financeira, formalização e concessão de microcrédito. Estou muito impressionada com o motor econômico que existe nas comunidades. São mais de 17 milhões de pessoas, sendo 9 milhões de mulheres, em 14 000 favelas. É como se fosse o quarto maior estado brasileiro, com um volume financeiro e atividade econômica de 180 bilhões de reais.

    No que diz respeito aos casos de assé­dio denunciados na Caixa, como está o andamento da apuração? A gente fez uma ação de governança muito sólida para dar credibilidade, rigor e independência nas investigações. Era preciso proteger todos os envolvidos, para ouvir, dar segurança e apurar. Estamos falando de pessoas. Então, foi feita a contratação, ainda antes da minha chegada, de uma auditoria independente. Foi criada uma comissão de supervisão que monitora o andamento dos trabalhos, com representantes do conselho de administração do banco, do TCU, da AGU e da CGU. Além disso, existe agora uma central de apoio e acolhimento, de diálogo, em uma sala permanente e exclusiva para mulheres. Conversei muito com os outros bancos para compartilhar as melhores práticas, porque toda vez que você tem um evento de risco, você isola a crise, trata ela e vê como se aprimoram os controles. A corregedoria agora não se reporta mais ao presidente, e sim ao conselho de administração.

    E quais têm sido os resultados dessas medidas? Um diagnóstico interessante é que toda vez que se fortalece e se faz campanha de prevenção contra abusos, é quase como se você gerasse um estímulo de denúncias. Então, em um primeiro momento, os casos aumentam. Em relação ao assédio moral também acontece isso. O problema é que há uma linha muito tênue para qualificar esse tipo de ação. É um desafio para o Judiciário, e para as empresas em geral. Não é uma questão inerente à Caixa. Então, é natural uma elevação dos casos para se aprofundar no tratamento e, depois, realmente mudar a cultura e reduzir o problema. É uma construção, é algo evolutivo. E, acima de tudo, não é algo que se conclui em sessenta dias.

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    Antes mesmo de sua posse, a Caixa já concentrava programas cruciais para o projeto de reeleição do presidente Jair Bolsonaro. Ele pediu algo específico ao convidá-la para assumir o cargo? Desde o começo deste governo, eu me juntei a um projeto. Vim servir ao país, com a vontade de retribuir o privilégio que eu tive. A minha família era de classe média e eu tive uma ascensão financeira. Considerava uma chance única de transformação e quis fazer parte disso, independentemente do cargo. Sempre tive uma relação muito próxima com o presidente Bolsonaro, além do ministro Paulo Guedes. Tinha a confiança dele e um diálogo direto. Até mesmo por causa disso, acho muito curiosa essa questão de criarem narrativas sobre o presidente em relação às mulheres. O fato é que, hoje, dos vinte grandes bancos do Brasil, o único presidido por uma mulher é a Caixa, uma indicação dele e com a autonomia concedida por ele. A missão que eu recebi foi realizar a entrega dos programas de assistência social com antecipação de calendário, para que a gente aliviasse a população mais vulnerável. E já está dando um resultado extraordinário.

    “Acho curiosa essa narrativa sobre a relação do presidente com as mulheres. Dos vinte grandes bancos, a Caixa é o único com presidente mulher, em uma indicação feita por ele”

    Qual resultado? Em sessenta dias intensos entramos com uma grade de programas muito importantes, como o Auxílio Brasil aumentado para 600 reais e que atinge agora 20 milhões de famílias. Há ainda o vale gás, o auxílio caminhoneiro e o auxílio taxista. Além da esfera social, há o Pronampe, que já concedeu 50 bilhões de reais em crédito, sendo que só pela Caixa foram quase 6,3 bilhões de reais para mais de 60 000 empresas concedidos desde o fim de julho.

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    Sua passagem pelo Ministério da Economia foi muito voltada à desestatização e seu antecessor chegou a divulgar uma ideia de fazer uma privatização da área digital do banco. Esse projeto ainda existe? Por ora, não. Houve um projeto, conduzido durante um ano, mas eu ainda vejo uma grande oportunidade de digitalização da Caixa, ampliando a jornada do cliente. O banco ainda não abre conta-corrente digital. O Banco do Brasil é todo digital. Acho que existe uma grande oportunidade de integração estratégica, com tudo feito na plataforma gov.br. Hoje, são mais de 4 000 serviços. O governo federal brasileiro hoje é o mais digital das Américas, na frente dos Estados Unidos e do Canadá. É o sétimo mais digital do mundo. Se a gente conseguir desenhar algo com o mesmo DNA aqui, pode ter um impacto de redução de despesa pública mesmo. Ainda há um caminho longo para percorrer. O Brasil tem mais de 100 estatais e não está no plano de governo privatizar a Caixa. Mas isso não faz com que deixe de acreditar na agenda de privatizações.

    Com sua carreira construída no setor financeiro, como a senhora avalia a experiência na área pública? O que eu mais aprendi é que existe um Brasil que a Avenida Faria Lima não conhece. Em projetos como a reforma da Previdência, toda a discussão de reforma tributária, você conhece as vísceras do país. Em relação à máquina pública, existe um corpo técnico de servidores de excelência. Eu trabalhei com pessoas muito qualificadas dentro do Ministério da Economia e aqui na Caixa. Obviamente, você não tem a flexibilidade que se tem no setor privado. Há uma série de órgãos de controle e burocracias que tornam as decisões menos ágeis. Mas acho excepcional o resultado dessa jornada.

    Publicado em VEJA de 7 de setembro de 2022, edição nº 2805

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