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Crise global ‘vai afetar o Brasil’, diz economista-chefe do Banco Mundial

Carmen Rein­hart aponta para um agravamento da recessão econômica no planeta, com forte impacto também por aqui

Oferecimento de Atualizado em 4 jun 2024, 12h33 - Publicado em 12 ago 2022, 06h00
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  • Formada na Universidade Columbia e professora de sistemas financeiros internacionais em Harvard, a americana de origem cubana Carmen Rein­hart é uma das pesquisadoras mais citadas do mundo sobre estudos de desenvolvimento. A agência de notícia Reuters a elegeu como uma das principais mentes do ambiente econômico do mundo e a Bloomberg, uma das cinquenta pessoas mais influentes das finanças globais. Atualmente, ela finaliza seu mandato como economista-chefe do Banco Mundial, posição em que experimentou tempos extremamente conturbados, marcados pela convulsão decorrente da pandemia da Covid-19 e, nos últimos meses, da guerra na Ucrânia. O resultado desses dois episódios, além da instabilidade generalizada, foi a ruptura das cadeias de fornecimento e a inflação hoje observada nas maiores economias do mundo. Em entrevista por teleconferência, a economista alertou sobre a chegada de mais uma recessão global, que deve ser causada pela elevação simultânea dos juros por todo o planeta, o remédio amargo adotado para combater a alta de preços. Segundo ela, os impactos deverão ser sentidos especialmente pelo Brasil, mesmo tendo o país registrado números mais positivos no cálculo da inflação. Para Rein­hart, no futuro próximo, a redução nas exportações para os Estados Unidos e a Europa e a desaceleração da China deverão afetar negativamente o país.

    O Banco Mundial alertou recentemente sobre previsões menores do crescimento da economia mundial. O mundo está se dirigindo para uma recessão no futuro próximo? Esta é a pergunta do momento. Dificilmente tenho uma conversa em que o assunto não seja uma possível recessão mundial, ou alguma variação disso, como contração econômica nos Estados Unidos, na Europa ou nos mercados emergentes. A mensagem principal é que as nossas previsões, como também as feitas pela OCDE, são pouco otimistas. A invasão da Ucrânia continua, assim como seu impacto nas pressões inflacionárias e na volatilidade nos preços das commodities. A necessidade de os bancos centrais apertarem a política de juros permanece. Então, os riscos de uma mudança para um ambiente de maior inflação, menor liquidez de recursos financeiros e, em muitos casos, de política fiscal mais restritiva estão à mesa.

    Em que regiões esse risco é maior? Entre as economias avançadas, o maior e mais imediato risco é para a Europa, mesmo em comparação com os Estados Unidos, que registrou dois trimestres seguidos de queda do PIB. Isso porque o choque externo tem sido especialmente forte para o continente, devido à maior dependência das exportações de energia da Rússia. Mas, dentro da zona do euro, há situações diferentes. Enquanto a diminuição dos estímulos financeiros não é tão relevante para a Islândia, Holanda, Irlanda ou França, ela afeta muito mais a Itália e a Grécia, por exemplo, em que a situação econômica já era difícil antes mesmo da pandemia.

    E quanto aos Estados Unidos? Os riscos associados aos juros mais altos na economia americana são bem conhecidos. Veremos o setor imobiliário ser afetado, o que já está acontecendo, assim como os efeitos no consumo de bens duráveis, que são muito sensíveis a juros altos. No entanto, os Estados Unidos estão com um mercado de trabalho muito forte. Em julho foram criados 528 000 empregos, quando o mercado esperava que fossem 250 000. Há ainda uma maior reserva de poupança das famílias, que foi sendo acumulada durante os meses que permaneceram em distanciamento social. É uma sobra da época da Covid-19 e das políticas de distribuição de dinheiro para enfrentar a pandemia. Então, os efeitos de uma recessão de fato nos Estados Unidos aparecerão um pouco mais para a frente.

    “A situação vai ficar feia e vai afetar o Brasil, ainda que o Banco Central tenha se movido de forma mais agressiva do que seus pares, como o Federal Reserve e o Banco Central Europeu”

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    Nesse cenário, como ficarão os países emergentes como o Brasil? Sem querer ficar em cima do muro, existem dois cenários para os emergentes, que são muito diferentes no momento. Um para os importadores de commodities e outro para os exportadores. Muitos países estão sofrendo muito, na África Subsaariana, na Europa Oriental, na Ásia Central e no Oriente Médio, por causa do aumento dos preços de alimentos. O conflito da Ucrânia realmente deixou países dependentes de exportações de trigo e de fertilizantes numa situação muito precária, não só com a inflação disparando, mas com os preços relativos dos alimentos subindo significativamente. Por outro lado, há um grupo de exportadores de commodities, no qual o Brasil está inserido e que tem outra situação.

    O Brasil, então, pode atravessar melhor este momento? Pelo menos, por enquanto, vai haver um boom de commodities temporário, que pode ajudar na situação fiscal. Mas nem os importadores, nem os exportadores vão se beneficiar das condições financeiras internacionais mais restritivas do futuro. A situação vai ficar feia, e vai afetar o Brasil também, mesmo que o Banco Central do país tenha se mexido de forma mais agressiva para lidar com a inflação do que o Federal Reserve, nos Estados Unidos, e os bancos centrais de outras economias avançadas.

    Mas essa agilidade do BC e com as exportações de commodities o país não seria capaz de se proteger dessa volatilidade? Se a história é um guia, a cada vez que ocorrem aumentos das taxas de juros mundiais, o apetite por risco diminui. Então, se coloca pressão nos emergentes. Alguns economistas enfatizam que juros mais altos também fazem o mercado de ações mais volátil. Já estamos vendo isso. Essa volatilidade é associada com mais sensação de risco e menos fluxo de capital especialmente para os grandes mercados emergentes, como o Brasil, a África do Sul e a Turquia.

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    Então, nesse cenário, o Brasil precisa se preocupar mais com a situação fiscal? O desequilíbrio fiscal é um risco para o Brasil. O país tem historicamente um alto nível de endividamento, e que no setor público está alto no momento, de cerca de 80% do PIB. Além disso, o Brasil é muito vulnerável a mudanças das condições de mercados financeiros. Então, é grande o risco, se o governo atrasar o reajuste fiscal. Mesmo que não houvesse a questão das eleições, o boom dos preços de commodities estimula os governos a atender as demandas por mais gastos. A alta das exportações faz a situação fiscal parecer melhor, mas o ajuste das contas públicas é fundamental.

    A atual ameaça de recessão não poderia ter sido evitada, principalmente no que diz respeito ao superaquecimento da economia e às maneiras de controlar esse fenômeno? A minha crença é de que não aprendemos com os erros do passado. O pouso leve da economia é uma ilusão. Historicamente, fazer a inflação baixar nunca acontece sem dor. Nos Estados Unidos, você pode indicar o pouso leve realizado por Alan Greenspan, então presidente do Fed em meados dos anos 1990. No entanto, a inflação estava na época em 3%, apenas um pouco acima da meta. Não era uma inflação de 8,5%, como a atual. Os números atuais dificultam isso.

    A senhora acredita que as medidas adotadas serão suficientes para evitar o pior? É muito difícil controlar a inflação nos patamares de hoje. Hoje as taxas de juros nominais estão em 2,5%, mas, honestamente, não creio que, nem mesmo se forem ampliadas para 3%, seriam suficientes para lidar com as pressões atuais. Se a taxa dos títulos federais chegar a esse índice e você tem uma inflação de 8,5%, ainda haverá 5,5% de juros negativos reais. Então, ainda ficaria muito longe das taxas de juros que vemos em períodos desinflação.

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    Com os Estados Unidos e a Europa entrando em um período de contração seria importante contar com a China, como aconteceu no passado. Hoje, dadas as próprias dificuldades que os chineses enfrentam, isso não será possível. O mundo voltou a depender dos países desenvolvidos para sustentar o crescimento global? Este é um ponto que avalio em minhas análises da crise de 2008 e 2009. Ela é chamada de crise financeira global. Mas foi realmente uma crise baseada fundamentalmente em uma dúzia de economias avançadas, que ocorreu quando o mercado imobiliário americano entrou em colapso. Logo depois, os emergentes, incluindo o Brasil, que até enfrentaram um breve período difícil durante a crise, se recuperaram muito mais rapidamente — e com mais força. Muito disso só foi possível pelo motor de crescimento que a China provia. Entre 2003 e 2013, a China cresceu acima dos 10% ao ano, em média. Isso manteve os preços das commodities em alta e a demanda para o comércio global.

    “Não aprendemos com os erros e as experiências das crises do passado. O pouso leve na economia é uma ilusão. Historicamente, fazer a inflação baixar nunca acontece sem dor”

    Qual a situação atual? Agora, até mesmo os empréstimos chineses para países da América Latina, Ásia e África foram interrompidos. Em 2019, pela primeira vez desde o começo dos anos 2000, a China apresentou envios negativos líquidos de crédito, e o boom de empréstimos para mercados emergentes acabou. Então, não podemos mais contar com a China para segurar o crescimento. A economia global está enfrentando, por diversos ângulos, riscos significativos para entrar numa dinâmica de baixa.

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    Ou seja, trata-se de cenário complexo, onde, além da Covid e da Guerra na Ucrânia, que causaram aumento de pobreza, desigualdade e maior endividamento, vamos sofrer com a diminuição da atividade na China nos próximos anos? Escrevi muito pelo Banco Mundial e também apresentei uma palestra no Simpósio do Prêmio Nobel, em Estocolmo, sobre o problema dessa reversão de perspectivas que estamos vivendo. Toda uma série de indicadores econômicos e sociais melhorou dramaticamente entre 2000 e 2020 pelo mundo, como o aumento geral do PIB per capita, as taxas declinantes de pobreza e menos desigualdade, mas muito do ímpeto desse desenvolvimento recente começou a desacelerar por volta de 2015. Lembre-se da grande queda das commodities nessa época. O real foi afetado fortemente naquele ano, e muitos países emergentes também sofreram. Então, veio a Covid, com mais recuos severos, e a guerra na Europa. Esses problemas permanecerão como uma ferida aberta por algum tempo.

    Qual retrocesso preocupa mais? O Banco Mundial tem feito muitas análises atualmente sobre o legado da Covid, e o seu impacto no capital humano em países de renda média. Por exemplo, Uganda teve um dos mais longos períodos com escolas fechadas do mundo, mas as perdas de aprendizado foram maiores em países de renda média, incluindo o Brasil. A piora de qualidade do aprendizado e o tanto de ensinamentos perdidos foram maiores neles do que nos países mais pobres. Segundo a nossa análise no banco, à medida que as crianças forem para a força de trabalho, haverá consequências muito preo­cupantes de médio e longo prazo. Não podemos perder de vista que essa perda de aprendizado traz uma longa sombra que vai se estender por bastante tempo.

    Publicado em VEJA de 17 de agosto de 2022, edição nº 2802

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