Em uma guerra que se arrasta sem avanços definitivos de lado a lado desde que, logo nos primeiros meses, os invasores russos tomaram e ocuparam um corredor de território ucraniano que se estende ao longo da fronteira, Moscou procura com lupa indícios de esgarçamento do pacto europeu-americano que sustenta e arma a teimosa — e competente — resistência da Ucrânia. Até agora, não teve sucesso. Pelo contrário: uma blitz diplomática deflagrada pelo presidente Volodymyr Zelensky resultou em mais apoio ainda, e mais munição, contra as tropas do Kremlin. Zelensky iniciou seu périplo por capitais da Europa, entre elas Londres, Paris e Roma, e em seguida emendou uma passagem pela cúpula da Liga Árabe em Jeddah, na Arábia Saudita. De lá seguiu para o Japão, como convidado-surpresa do encontro anual das nações economicamente avançadas que formam o G7.
Em Hiroshima, cidade devastada pela primeira bomba atômica do planeta, lançada pelos Estados Unidos no fim da II Guerra Mundial, o presidente ucraniano voltou a exercitar seu talento retórico para arrebatar corações e mentes. “A Ucrânia pode viver experiência semelhante caso não receba mais ajuda”, alertou — e marcou um tento com o “sim” de Joe Biden ao treinamento de pilotos ucranianos no manejo dos caças americanos F-16, cobiçados aviões militares que a Casa Branca vinha regateando por receio de uma escalada nos combates. Zelensky teve também a primeira conversa cara a cara com outro convidado do encontro, o primeiro-ministro da Índia, Narendra Modi, que mantém laços comerciais estreitos com Moscou e manifesta neutralidade no conflito. No entanto, não trocou palavra com outro “neutro” presente, o presidente Lula. Os dois lados alegaram desencontro de agendas.
Além da expectativa de receber os caças F-16, que Reino Unido e Holanda se dispunham a ceder mas precisavam da autorização dos Estados Unidos, o poderio bélico da Ucrânia foi reforçado, de março para cá, com uma centena de tanques, entre eles o avançado Leopard alemão, e os sistemas de mísseis de defesa antiaérea Patriot e Himars, guiados por geolocalização. Um pacote de 375 milhões de dólares anunciado por Biden no Japão prevê o envio de blindados Stryker, eficazes em combates urbanos. “Esses equipamentos são importantes para defesa, mas devem ter efeito ainda mais significativo na capacidade ofensiva”, avalia Timothy Ash, especialista em Rússia e Eurásia do centro de pesquisas Chatham House.
A ampliação do arsenal faz parte da propalada contraofensiva que a Ucrânia está montando para tentar recuperar território, enfraquecer o inimigo e pressionar a Rússia a negociar o fim da guerra. Uma colaboração inesperada partiu nos últimos dias de dois grupos supostamente formados por russos contrários a Vladimir Putin que iniciaram uma série de ataques na região de Belgorod, do seu lado da fronteira, provocando explosões acionadas por drones em bairros residenciais e linhas de infraestrutura.
Na trincheira russa, as tropas comemoraram uma rara vitória militar com o fim da ofensiva ucraniana para retomar a cidade de Bakhmut, distrito industrial com 70 000 habitantes ocupado no começo da guerra. Pouco importante estrategicamente, Bakhmut se tornou ponto de honra para o Kremlin, que lá sustentou uma batalha de dez meses liderada pelos mercenários do grupo Wagner, ao custo de milhares de mortos (dos dois lados), batalhões dizimados e a total destruição da cidade, hoje praticamente abandonada. “Bakhmut não tem grande significado militar, mas se tornou símbolo de quem está ganhando a guerra”, diz Robert English, autor do livro A Rússia e a Ideia do Ocidente.
Enquanto Moscou comparava a vitória aos triunfos na II Guerra Mundial, Kiev argumentava que os russos vão ter de manter uma presença militar significativa na cidade, prejudicando a resistência à iminente ofensiva ucraniana. Recuperar territórios ocupados que são rotas vitais de suprimento dos invasores e obrigar Putin a negociar é ambição não só de Kiev, mas de seus aliados ocidentais, que empenham enorme volume de prestígio e recursos em uma guerra que não é sua. “Mas sempre existe o risco de o conflito seguir sua espiral de violência, prolongando-se indefinidamente”, diz Dara Massicot, especialista em política global da Rand Corporation, nos Estados Unidos. Ao que tudo indica, a paz entre Ucrânia e Rússia não virá sem mais derramamento de sangue.
Publicado em VEJA de 31 de maio de 2023, edição nº 2843