Era para ser mais uma aberração discriminatória para consumo interno no vasto repertório de Viktor Orbán, o ultradireitista presidente da Hungria que já investiu contra judeus, muçulmanos e ciganos e fez dos imigrantes a causa de todos os males que possam recair sobre a Europa. Em meados de junho, o dócil Parlamento húngaro aprovou, por 157 votos a um, o projeto de lei que proíbe “a demonstração e promoção da homossexualidade” entre os menores de 18 anos — o que, na prática, significa vetar a mera menção a gays nas escolas e na TV e a veiculação de séries e filmes consagrados como Harry Potter e Billy Elliot. A reação, porém, extrapolou as fronteiras e ressoou em toda a Europa. Líderes de dezessete países, entre eles Angela Merkel, da Alemanha, Pedro Sánchez, da Espanha, e Mario Draghi, da Itália, assinaram uma carta de compromisso contra atos de intolerância dirigidos à comunidade LGBTQIA+. O presidente francês, Emmanuel Macron, falou em “guerra contra a civilização e a cultura”. O debate pegou fogo na reunião dos dirigentes da União Europeia em Bruxelas, onde Orbán, encurralado e sem reação, foi desancado. “Se você pensa assim, por que continua na União Europeia?”, disparou o primeiro-ministro da Holanda, Mark Rutte.
A nova lei húngara teve papel de destaque nas faixas e nos coros das manifestações promovidas por entidades de direitos humanos nas principais capitais europeias na segunda-feira 28, Dia Internacional do Orgulho LGBTQIA+. Antes disso, no fim de semana, a prefeitura de Munique pediu à Uefa, a federação de futebol europeia, autorização para iluminar a Allianz Arena com as cores do arco-íris durante um jogo entre Alemanha e Hungria. O pedido foi negado sob a alegação de que a entidade não toma partido em questões políticas. Em reação, estádios de todo o continente que recebiam partidas dos campeonatos locais exibiram a iluminação e diversos jogadores entraram em campo usando braçadeiras nas cores da bandeira gay.
Com medo de vaias, Orbán cancelou sua ida a jogos de futebol e, ao mesmo tempo, iniciou uma ofensiva para tentar desvincular-se a legislação dos homossexuais. Trata-se, segundo ele, de uma medida contra a pedofilia e a favor “dos direitos das crianças e dos pais”. Colocou-se, inclusive, como defensor da liberdade: “Lutei contra o regime comunista, que punia a homossexualidade”. “Orbán ataca minorias que vivem em situação de exclusão. Com o refluxo de imigrantes, elegeu os gays para alvo”, diz a política de oposição húngara Katalin Cseh, deputada do Parlamento Europeu. A base de apoio externo do presidente, no entanto, continua sendo mínima. Na reunião de Bruxelas, obteve simpatia explícita da Polônia — onde prefeituras instituíram “zonas livres de gays” pelo país — e a abstenção da Eslovênia. Em Praga, o presidente checo Milos Zeman não só corroborou a intolerância, como classificou os transgêneros de seres “repugnantes”.
No poder desde 2010, acumulando três mandatos consecutivos, Orbán angariou vasta base popular com seu discurso ultraconservador, xenófobo e propagador da “Europa cristã”, facilitado pelo aniquilamento, à custa de censura e aperto financeiro, de toda a imprensa de oposição. Repisar a perseguição aos homossexuais faz parte de sua estratégia para se reeleger mais uma vez em 2022: segundo pesquisa do instituto Eurobarómetro, 51% dos húngaros discordam da afirmação de que “gays, lésbicas e bissexuais devem ter os mesmos direitos que os heterossexuais”, o maior porcentual do continente. As atitudes do líder populista batem de frente com os estatutos da União Europeia, que promovem a igualdade e os direitos democráticos, mas Orbán sempre escapou de punições mais rígidas pela pouca disposição da Comissão Europeia, o órgão executivo do bloco, de mexer no vespeiro das diferenças nacionais. Segundo especialistas, porém, se a nova lei entrar mesmo em vigor é possível que ela lance mão dos mecanismos a seu dispor para suspender a transferência de recursos da UE para a Hungria. “Na reunião de Bruxelas ficou claro que a nova legislação húngara vai contra os nossos valores. Temos de proteger nossos cidadãos, vivam onde viverem e amem a quem amarem”, disse a presidente da Comissão, Ursula von der Leyen. Pode ser que, desta vez, Orbán tenha ido longe demais.
Publicado em VEJA de 7 de julho de 2021, edição nº 2745