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Turismo sem galochas: Veneza testa barreiras contra inundações

O governo aprova um sistema de comportas que, quando inaugurado, deverá acabar com os famosos alagamentos que prejudicam a bela cidade da Itália no inverno

Por Amanda Péchy Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 4 jun 2024, 15h40 - Publicado em 14 ago 2020, 06h00
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  • Erguida sobre uma laguna de pouca profundidade no Mar Adriático, a esplendorosa cidade de Veneza, na Itália, cresceu, progrediu e se tornou o maior centro financeiro internacional da Idade Média, polo da arte renascentista, depositária de um estilo arquitetônico eclético e elegante e, na era moderna, ímã de turistas de todas as partes do mundo — 20 milhões a 30 milhões por ano, que atravancam o centro histórico onde moram 55 000 pessoas. Com tantos atributos, no entanto, La Serenissima, como é conhecida, nunca pôde se livrar de um mal crônico: a acqua alta, fenômeno que faz com que as águas subam e inundem boa parte de suas praças e majestosas edificações.

    A elevação da maré no inverno europeu castiga, desde sua fundação, a cidade postada sobre 118 ilhotas unidas por 400 pontes, mas nos últimos tempos a poluição, o movimento excessivo de visitantes embasbacados e o aquecimento global vêm obrigando cidadãos de todo o mundo a caminhar semissubmersos com frequência cada vez maior. Nas duas primeiras décadas do século XX, Veneza teve cinco enchentes de mais de 110 centímetros. Neste século, o número subiu para 130, sendo a de novembro passado — 187 centímetros — a mais grave em cinquenta anos. A esperança de melhora está na monumental barreira em construção na boca da laguna, a maior obra pública em andamento no mundo, que acaba de passar por seu primeiro teste prático, com sucesso, e tem a inauguração prometida para o fim de 2021. O êxito do ensaio reacendeu as esperanças de que enfim se concretize o projeto de 6 bilhões de euros, iniciado em 2003, que ao longo de anos de atrasos e superfaturamentos alimentou um propinoduto de fazer inveja a muito delator premiado em outras plagas.

    O Módulo Eletromecânico Experimental, o Mose, consiste de 78 enormes comportas amarelas posicionadas no fundo das três entradas que separam o Mar Adriático da laguna. Em uma saleta montada no Arsenal de Veneza, uma equipe monitora constantemente as marés, conferindo ventos, nível da água, ondas, pressão e volume dos rios para antecipar a ocorrência de inundações. Quando estiverem prontas, ao sinal de alerta desse serviço, as comportas, que são ocas, se esvaziarão e subirão para bloquear as entradas, processo que deve levar no máximo meia hora e oferecerá proteção contra até 3 metros de água.

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    ENSAIO - Barragem em ação: a obra deve entrar em funcionamento em 2021 – (Giacomo Cosua/NurPhoto/Getty Images)

    Quase todas as grandes cidades europeias atravessadas por grandes rios ou à beira-mar têm algum sistema de controle de inundações, sendo o mais imponente até hoje os 32 quilômetros de diques que barram o Mar do Norte no litoral da Holanda. Os métodos variam — Paris, por exemplo, gerencia o volume do Sena com barragens rio acima e Tóquio instalou a 22 metros de profundidade um sistema de túneis e câmaras sustentados por imensos pilares, que ganhou o apelido de “catedral”. A Grande Barragem do Tâmisa, em Londres, funciona como o Mose veneziano, com uma diferença: na Itália, não só as comportas, mas também os compressores de ar comprimido usados para operá-las, as bombas e até os túneis de serviço são inteiramente submersos, cumprindo a exigência do governo de o sistema “não causar impacto visual ou interferir na paisagem e nas atividades econômicas locais”.

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    Sem sistema eficiente até agora para deter as seculares inundações periódicas, Veneza criou um eficiente protocolo de prevenção. Uma sirene avisa quando as águas se aproximam e a informação é replicada na internet e nos celulares. Passarelas removíveis são colocadas nos locais de grande movimento de pedestres. Moradores e comerciantes na área de risco erguem móveis e mercadorias. Aí, é esperar a água baixar, o que costuma levar por volta de duas horas, e tocar a vida até a próxima inundação, uma rotina trabalhosa que, espera-se, o novo sistema vai dispensar de vez.

    O atraso de doze anos na inauguração e o acréscimo de 3 bilhões de euros no orçamento do Mose resultaram em outra inundação, essa de extensas denúncias de desvios e propinas ao longo da obra. Em 2014, investigações sobre o consórcio responsável levou à prisão 35 pessoas, entre elas o então prefeito de Veneza, Giorgio Orsoni, e um ex-governador da região do Vêneto, Giancarlo Galan. Outra grave preocupação é que o sistema logo fique obsoleto — o Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas calcula que as águas em volta da cidade subam entre 60 e 110 centímetros até o ano de 2100. “A questão não é se vamos ter que substituir o Mose. A questão é quando”, diz Georg Umgiesser, oceanógrafo do Instituto de Ciências Marítimas veneziano. Mesmo assim, colocar as comportas para funcionar será mais uma vitória para a belíssima Veneza, que serenamente resiste, durante toda a sua existência, à força da natureza a sua volta.

    Publicado em VEJA de 19 de agosto de 2020, edição nº 2700

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