Finalmente indiciado por supostos crimes, Donald Trump aponta o dedo para seus acusadores e põe a culpa de tudo em George Soros, o eterno arqui-inimigo da direita
Mesmo com regalias, como prescindir de algemas e não ter de posar de frente e perfil para a famosa mugshot, Donald Trump se entregou à polícia em Manhattan na terça-feira 4 e teve as digitais escaneadas. O indiciamento, depois que um grande júri considerou as provas contra ele suficientes para abrir processo, marca a primeira vez na história dos Estados Unidos que um ex-presidente tem de responder a acusações criminais — 34, precisamente. Um Trump incomumente circunspecto entrou e saiu do tribunal sem dizer palavra, além de prestar informações pessoais e se declarar “não culpado”. À noite, porém, no ninho de apoiadores em torno de Mar-a-Lago, sua propriedade na Flórida, voltou ao normal, vociferando contra a perseguição de que é alvo e contra o “corrupto” promotor Alvin Bragg, que teria sido “escolhido a dedo e financiado por George Soros” — mais uma chicotada verbal contra o bilionário e filantropo judeu húngaro-americano que apoia causas liberais e virou o bicho-papão de imaginárias conspirações maléficas da direita.
Bragg é filiado ao Partido Democrata e não esconde o pendor para a política, mas tem se mostrado equilibrado e sério ao longo do inquérito. Trump, ao contrário, quer ver o circo pegar fogo — pelo menos enquanto servir para esquentar sua campanha eleitoral. “Alvin Bragg recebeu MAIS DE 1 MILHÃO DE DÓLARES do Inimigo da Esquerda Radical de TRUMP, George Soros”, postou, com o habitual festival de maiúsculas. A conexão entre Soros e o promotor é real, mas exagerada. Um porta-voz do bilionário disse a VEJA que os dois não se conhecem e que ele não deu dinheiro diretamente para a campanha de Bragg (promotores são eleitos em Nova York). A fundação de Soros, Open Society, doou, sim, mais de 1 milhão de dólares ao grupo Color of Change, que apoia promotores progressistas e a reforma da Justiça Criminal (uma bandeira do investidor), e o grupo, por sua vez, repassou metade do dinheiro para a campanha de Bragg em 2021.
Soros, 92 anos, é há décadas uma fonte inesgotável de recursos para as mais diversas causas progressistas, como mudanças climáticas, humanização do sistema prisional e acolhimento de refugiados. Como era de esperar, abomina Donald Trump, tendo doado pessoalmente 128,5 milhões de dólares ao Partido Democrata em 2022. Em uma campanha de demonização que começou subterrânea e foi ganhando os megafones da direita mais barulhenta, Soros se tornou a cara de um suposto movimento “globalista” — com nítidas tintas antissemitas — para liquidar a civilização ocidental. “Ele é estampado como radical de esquerda e a mente por trás do complô para minar a ordem mundial, diluindo a natureza branca e cristã das sociedades por meio da imigração”, diz Levente Littvay, professor da Academia Húngara de Ciências.
Nascido em Budapeste, Soros viveu sob os regimes nazista e comunista antes de emigrar para Nova York. Com patrimônio avaliado em 7 bilhões de dólares (depois de ter doado 15 bilhões), fez fortuna no mercado financeiro — em 1992, ganhou 1 bilhão de dólares em um único dia vendendo libras esterlinas a descoberto, o que lhe rendeu a duvidosa fama de “o homem que quebrou o Banco da Inglaterra”. Decolou na filantropia na virada para a década de 1990, financiando a transição para a democracia de ex-repúblicas soviéticas. Detalhe curioso: o primeiro-ministro húngaro Viktor Orbán, prócer da direita empenhado em desancar Soros, estudou em Londres com uma generosa bolsa de sua fundação.
Embora algumas causas sejam legítimas, os críticos de seus métodos não estão errados em dizer que Soros usa a fortuna para, em muitas ocasiões, forçar a barra. Ele mesmo afirmou ao The New York Times, em 2019, que “o arco da história não segue seu próprio curso, precisa ser dobrado”. Trump, por outro lado, prefere uma narrativa mais romanceada da realidade. Postando-se como vítima inocente de malignas manobras, ele segue negando todas as acusações, que giram em torno da compra do silêncio de três pessoas — uma delas a atriz pornô Stormy Daniels — durante a corrida presidencial de 2016, para garantir que casos extraconjugais não afetassem a campanha. O julgamento deve durar cerca de um ano, tempo de sobra para Trump lançar um mar de invectivas contra aqueles que querem “DESTRUIR NOSSA GRANDE NAÇÃO”.
Publicado em VEJA de 12 de abril de 2023, edição nº 2836