A Suprema Corte dos Estados Unidos é uma instituição extremamente ciosa de sua reputação. Os nove juízes levam vida discreta, raramente dão entrevista, conduzem suas sessões a portas fechadas e costumam emitir seus pareceres por escrito. Raramente surpreendem. Bem antes da votação final, já se sabe para que lado se inclinam os progressistas, para onde tendem os conservadores e até que apito tocam aqueles mais flexíveis, capazes de integrar uma ala mas eventualmente se aliar a outra. É justamente por isso que, neste momento crucial em que a mais alta Corte americana debate se mantém ou não um direito estabelecido há quase meio século, uma coisa é praticamente certa: as normas que regulamentam o aborto, estabelecidas no célebre processo Roe v. Wade, de 1973, vão mudar.
A decisão, que obrigou todos os cinquenta estados a permitir e oferecer condições para mulheres abortarem até a 24ª semana de gravidez — quando se estabelece a chamada “viabilidade do feto”, ou sua capacidade de sobreviver fora do útero —, sempre foi polêmica. Ao longo dos anos, grupos conservadores tentaram de todas as formas derrubá-la, alegando que a questão não é da alçada do Judiciário, enquanto órgãos de defesa dos direitos da mulher driblavam ações e revisões. Em 2017, Donald Trump chegou à Casa Branca — e aí não teve mais jeito. Estados republicanos aprovaram leis que contradizem a Roe v. Wade, elas foram questionadas na Justiça e, aos poucos, o aborto foi trilhando de novo o caminho até a Suprema Corte, agora com franca maioria à direita. O processo em debate põe a Jackson Women’s Health Organization contra o Estado do Mississippi, que em 2018 sancionou uma lei que veta a interrupção da gravidez após quinze semanas. O julgamento deve se arrastar até junho de 2022 e se tornou, desde o primeiro dia, um dos mais barulhentos capítulos no antagonismo que racha os Estados Unidos.
As manifestações dos juízes até agora indicam que a Roe v. Wade será modificada — só não se sabe como. Pode ser que o prazo para o aborto seja reduzido universalmente para quinze semanas. Pode ser que a decisão acabe sumariamente anulada. Em setembro, o tribunal se recusou, por 5 votos a 4, a suspender a entrada em vigor de uma lei ainda mais dura aprovada no Texas, que veta o procedimento após seis semanas. Seja como for, a legalização do procedimento com certeza sairá enfraquecida. Um levantamento do instituto pró-aborto Guttmacher, de Nova York, mostra que qualquer mudança implicará em imediatas restrições em 26 dos cinquenta estados. Sem muito jogo de cintura para reverter a tendência no campo das convicções, os juízes progressistas estão apelando para o constrangimento, perante a opinião pública, de se derrubar uma decisão sacramentada. “Será que esta instituição sobreviverá à ideia de que interpretar a Constituição virou um ato político?”, questionou a juíza Sonia Sotomayor, na leitura inicial do caso.
Responsável por decisões históricas — em 1954 proibiu a segregação racial, e em 2015 legalizou o casamento entre pessoas do mesmo sexo, entre outras —, a composição da Suprema Corte sempre foi um campo de batalha entre progressistas e conservadores, movido pelo destino, visto que os postos são vitalícios. Trump deu sorte: em sua gestão, conseguiu emplacar três juízes, sendo a última Amy Coney Barrett, católica fervorosa, mãe de sete filhos e radicalmente contra o aborto. O tribunal ficou — ele também — tão polarizado que perdeu prestígio: segundo pesquisa do Instituto Gallup em setembro, só 40% dos americanos aprovam sua atuação hoje em dia, o menor porcentual desde 2000. “A tendência é sua legitimidade ser cada vez mais questionada”, diz Melissa Murray, professora de direito da Universidade de Nova York. Na pauta de processos está outra questão explosiva, o direito ao porte de armas — para os conservadores, uma liberdade quase sagrada. O lobby pró-armamento questiona ordens municipais e estaduais que restringem o direito de andar armado, em um esforço para conter os massacres promovidos por atiradores solitários, uma chaga nacional.
Antes, porém, os seis juízes conservadores e os três progressistas vão deliberar — e ao que tudo indica reverter — a legalização do aborto, um passo atrás que pode repercutir no mundo todo. A título de curiosidade: “Jane Roe”, iniciadora da ação pelo direito ao aborto em 1970, foi identificada anos depois como a garçonete Norma McCorvey. Como o processo levou três anos para ser julgado, Norma — que virou símbolo do movimento pró-aborto, depois se tornou evangélica e mudou de lado — teve o bebê e deu para adoção. Era uma menina. Shelley Lynn Thornton, 51 anos, apresentou-se publicamente em setembro passado. Não é contra nem a favor do aborto — só quer distância dessa briga.
Publicado em VEJA de 15 de dezembro de 2021, edição nº 2768