Em uma coreografia complexa e hiperbólica que traduz a imensidão da Índia, 970 milhões de pessoas foram às urnas ao longo do último mês para participar da maior eleição livre do planeta. O resultado final, previsto para a terça-feira 4, não deve trazer novidade: é dada como certa a confirmação do terceiro mandato do primeiro-ministro Narendra Modi, dono de estonteantes 78% de aprovação e líder inconteste da nação. Um exercício democrático de tamanha dimensão seria admirável, não fosse por um aspecto que causa arrepio nas fileiras menos conservadoras: Modi faz parte do rol crescente de populistas da direita radical que, legitimados pelo voto, usam o cargo para implantar sua versão da “democracia iliberal”, termo cunhado pelo húngaro Viktor Orbán para definir os regimes autoritários que trocam o uso da força, típico de ditaduras, pela estratégia política para se perpetuar. É um modus operandi que ecoa em todos os cantos do globo, mostrando que a direita extremada aprendeu a lição de como sair da sombra e se expandir para além das franjas da burocracia política.
A trajetória de ascensão da ultradireita na última década teve como marco zero a crise econômica detonada pela explosão da bolha imobiliária americana em 2008. Seus efeitos deletérios, incluindo o derretimento desse mercado crucial, o desemprego galopante e a explosão das desigualdades, atingiram todos os continentes e expuseram o ressentimento generalizado de amplas fatias das populações que se julgavam alijadas das engrenagens que impulsionam riquezas. Na esteira do descontentamento com políticos, instituições e “elites” variadas, surgiram figuras carismáticas, hábeis em apontar culpados e oferecer saídas fáceis para problemas complexos. Em geral, são “soluções” pintadas com as cores do extremismo, entre elas, o expurgo dos privilegiados (um bando de corruptos), a expulsão de imigrantes (usurpadores de empregos e benefícios) e a repressão de minorias como os LGBTQIA+ (destruidoras da família e das tradições). Os ultradireitistas beberam do voto de protesto contra o establishment e foram ganhando espaço e relevância, impulsionando movimentos como o Brexit, em 2016, e a eleição de Donald Trump à Casa Branca na sequência.
Na maratona eleitoral deste ano, em que metade do planeta irá às urnas, uma nova leva de candidatos da “direita dura”, na definição americana, deverá chegar ao poder embalada não mais pela mera insatisfação com a política tradicional, mas, sim, pela afinidade dos eleitores com sua agenda conservadora. Mesmo que vários desses líderes façam gestos nítidos de que trabalham para corroer a democracia por dentro, são aceitos por boa parte da população. “A ultradireita foi normalizada, bem como algumas de suas ideias centrais”, diz Leonardo Trevisan, professor de relações internacionais da ESPM. “Ela vive uma nova onda como corrente dominante.”
O indiano Modi segue à risca a cartilha do conservadorismo em ascensão. Seu Partido Bharatiya Janata (BJP) tem como origem um grupo paramilitar que se inspirava nos Camisas Negras do ditador italiano Benito Mussolini (1883-1945). Ele prega um nacionalismo exacerbado, no qual a Índia é o país dos hindus e os muçulmanos, 14% da população, estão lá para destruir os valores tradicionais. Em paralelo, sufoca críticos, intimida os meios de comunicação e apela para detenções e processos judiciais contra os opositores. Nada disso afeta sua popularidade, tanto no Norte, mais pobre, onde Modi distribui benefícios e sacos de arroz com seu retrato estampado, quanto no Sul, mais avançado, que tira proveito de uma das maiores taxas de crescimento econômico do mundo, na casa dos 7% ao ano. “Usando as regras democráticas a seu favor, Modi passa a integrar a turma crescente de democratas iliberais”, diz a cientista política paquistanesa Mariam Mufti.
Segundo o Instituto V-Dem, hoje quase 75% da população mundial vive sob regimes autocráticos, um salto de 71% em relação à última década. Autoritarismo não tem coloração política, e autocracia é praga que assola tanto a direita quanto a esquerda, mas neste momento a maré é claramente ultraconservadora. Mesmo tolhido pela rede inviolável de garantias da democracia americana, Donald Trump, showman da direita dura, prenuncia barbaridades em seus discursos de campanha (entre elas “a maior operação interna de deportação da história dos Estados Unidos”) e, com essa retórica, abriu vantagem de até 8 pontos percentuais sobre seu rival, Joe Biden, em cinco estados-chave para as eleições nos Estados Unidos — não se sabe, contudo, qual pode ser o impacto eleitoral depois de toda a exposição sob os holofotes da Corte de Nova York, onde foi apontado, numa decisão histórica, como culpado, na quinta-feira 30, por maquiagem financeira para encobrir transferências a uma atriz pornô, a quem pagou para silenciar sobre um caso do passado, às vésperas do pleito presidencial de 2016. A pena, que ainda será definida, varia de multa a prisão. Na Argentina, Javier Milei tirou tanto os peronistas quanto a centro-direita tradicional do poder brandindo a motosserra ultraliberal contra gastos públicos e a “casta política” e segue com apoio de ampla parcela da população, desesperada com o estado caótico da economia. Na Hungria, Orbán, no poder desde 2010 e com controle absoluto da mídia e do Judiciário, segue popular em sua cruzada contra a “destruição dos valores tradicionais”. “Hoje, os extremistas tiram votos não somente da esquerda, como também da direita tradicional”, avalia Camila Rocha, autora de Menos Marx, Mais Mises: o Liberalismo e a Nova Direita no Brasil.
Com a experiência adquirida na última década, os partidos ultraconservadores sofisticaram suas táticas e puseram de pé redes de intercâmbio poderosas. Uma amostra recente dessa conexão foi o encontro em Madri do Vox, legenda da Espanha abertamente saudosista da ditadura franquista, que contou com a presença de Milei, tratado como superastro, e, por vídeo, de Orbán e da italiana Giorgia Meloni. Também contou com ultradireitistas estrangeiros a reunião anual, em fevereiro, da Conferência Conservadora (CPAC), em Washington. Em julho, aliás, a CPAC ganhará sua segunda edição no Brasil, em Balneário Camboriú, Santa Catarina, patrocinada pelo Instituto Conservador-Liberal comandado por Eduardo Bolsonaro — lembrando que o chefe do clã, Jair Bolsonaro, este ano passou uns dias na embaixada da Hungria, segundo ele não para sondar um possível asilo, como se aventou, mas para “manter contato com autoridades do país amigo” comandado pelo companheiro Orbán. Ativo promotor dessa integração, o britânico Nigel Farage, principal articulador do Brexit, anunciou que não vai se candidatar na eleição do mês que vem em seu país (onde, na contramão da Europa, os conservadores devem perder feio para os trabalhistas) para assessorar a campanha de Trump. “A pandemia acelerou a união internacional da extrema direita”, confirma Milo Comerford, pesquisador de extremismo do Institute for Strategic Dialogue, de Londres.
Epicentro do movimento, a União Europeia tem hoje oito países — Itália, Finlândia, Eslováquia, Hungria, Croácia, República Tcheca, Suécia e Holanda — com partidos ultradireitistas ou no governo, ou em alianças essenciais para sua sobrevivência. Na França, o Reunião Nacional, de Marine Le Pen, três vezes candidata à Presidência e provável postulante no pleito de 2027, conta com a simpatia de 30% da população, à frente do Renascimento, do presidente Emmanuel Macron. Na Alemanha, o Alternativa para a Alemanha (AfD), que flerta com o nazismo e está na mira da polícia, alcança o segundo lugar nas sondagens. O fator mais influente na virada ultraconservadora europeia é, de longe, a xenofobia produzida pela imigração acelerada — em 2022, entraram no continente 5,4 milhões de imigrantes. “O declínio da economia, a erosão da confiança na política tradicional e a imigração são os combustíveis da rápida ascensão populista”, diz Filippa Chatzistavrou, professora de ciências políticas da Universidade de Atenas.
De olho nas eleições para o Parlamento Europeu, em junho, a extrema direita intensificou a costura de alianças. Le Pen, cujo partido, o Reunião Nacional, integra o bloco parlamentar extremista Identidade e Democracia (ID), deixou a ciumeira de lado e convidou a italiana Meloni, líder de outra coligação direitista, a Reformistas e Conservadores Europeus (ECR), a formar uma frente ampla. “Chegou a hora de nos unirmos”, afirmou Le Pen. Uma junção dos dois grupos, estimam analistas, pode fazer a bancada radical ser a segunda maior força política em Bruxelas. Em busca de apoio mais amplo, tanto Le Pen quanto Meloni suavizaram seu discurso, deixando de atacar minorias para centrar fogo nos imigrantes. “Com roupagem civilizada, a ultradireita expande-se para além das classes baixas e populações rurais, alcançando parcelas endinheiradas e jovens”, diz Valeria Giannotta, cientista política especializada em extremismo.
Durante a Guerra Fria, os regimes democratas se espalharam pela metade do globo não dominada pela União Soviética como um modelo de governar imperfeito, mas capaz de constante evolução. Os autocratas nunca desapareceram totalmente, mas foram sendo substituídos por mandatários e parlamentares que têm sua autoridade limitada por tribunais, imprensa livre e grupos de pressão e enfrentam uma oposição que, embora vigorosa, reconhece a legitimidade do governo. Agora essa configuração é alvo de constantes ataques, principalmente de populistas de direita, um questionamento que faz a democracia retroceder no mundo há dezoito anos consecutivos, segundo relatório divulgado em fevereiro pela ONG Freedom House. A reação é possível — afinal, a forma do sistema democrático reside justamente em sua capacidade de reinvenção. Mas, pelo andar das eleições, muita água ultraconservadora vai rolar antes de a maré se inverter.
Publicado em VEJA de 31 de maio de 2024, edição nº 2895