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“Queimar o Corão é uma bobagem e um erro”, diz filósofo francês

André Comte-Sponville, cujos livros foram traduzidos em 24 línguas, acredita, no entanto, que haveria menos ódio contra o Islã se os próprios muçulmanos se mostrassem mais tolerantes e abertos

Por Mariana Pereira de Almeida
11 set 2010, 12h21

“Cabe aos muçulmanos mudar e não aos democratas”, diz Comte-Sponville

A ideia de um desconhecido pastor de uma remota igreja, numa pequena cidade da Flórida, de queimar o Corão – o livro sagrado do Islamismo – no dia do nono aniversário dos ataques de 11 de setembro nos EUA, inflamou o mundo. O ato simbólico do reverendo, cuja paróquia conta com apenas 50 fiéis, provocou discussões sobre o ódio e a intolerância em relação aos muçulmanos e também sobre o direito das demais pessoas à liberdade de expressão.

Autor de dezenas de livros, traduzidos em 24 línguas, o filósofo francês André Comte-Sponville diz que “queimar o Corão é uma bobagem e um erro” porque provoca deliberadamente a cólera de uma comunidade.

Contudo, o ex-professor da Sorbonne, que deixou a universidade para se dedicar à publicação de seus livros, atribui parte da culpa pelo ódio ao Islã aos próprios muçulmanos. “Nós temos o direito, em uma democracia, de ser antifascista, anticomunista ou antiliberal. Por que não se teria o direito de ser anticristão ou antimuçulmano ? Temos de desconfiar do politicamente correto, que pretende (sob o pretexto de tolerância) nos obrigar a pensar que todas as ideias têm valor”, afirma. Confira a íntegra da entrevista abaixo.

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O que o senhor diria sobre ações recentes contra símbolos islâmicos nos Estados Unidos, como a proposta de queimar o Corão, o livro sagrado dos muçulmanos?

Todos têm o direito de criticar o Islã, como qualquer outra religião ou ideologia. Mas é sempre chocante o fato de alguém queimar um livro e um absurdo provocar deliberadamente a cólera de uma comunidade. Em resumo, queimar o Corão é uma bobagem e um erro. Isto confirma que as paixões referentes às questões religiosas ou não religiosas são cada vez mais fortes. O remédio? A laicidade, a tolerância, o direito de crer e de não crer em algo.

Por que esta questão ressurge com tanta força agora, nove anos após os atentados de 11 de setembro ?

Esta crise é, em parte, ligada aos ataques de 11 de setembro de 2001, porém está relacionada também à globalização, de maneira geral. Cada comunidade religiosa se sente ameaçada pela coexistência com todas as outras. Daí vem a tentação de se voltar para a sua própria fé e de atacar aqueles que não partilham dela. A crise econômica mundial também tem um papel importante. É mais fácil, nos Estados Unidos e na Europa, queimar o Corão do que criar empregos…

O que o senhor acha do projeto para a construção de uma mesquita, perto do “Ground Zero”, em Nova York, onde ocorreram os atentados de 11 de setembro ?

Isso não me choca, mesmo sabendo que o fato escandaliza algumas pessoas, especialmente as famílias das vítimas. Cabe aos americanos decidir sobre o assunto. Contudo, não se pode agradar a todos. O presidente Barcak Obama está começando a perceber isso.

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Como é a situação dos muçulmanos na Europa ?

Na Europa, há dois fenômenos diferentes, mas que são difíceis de serem distinguidos. Há aquelas pessoas que combatem o Islã – e elas certamente têm o direito de fazê-lo – e há outras que detestam ou desprezam os muçulmanos, frequentemente por razões que têm mais a ver com o racismo ou a xenofobia do que com a religião.

Todos os seres humanos, no entanto, são iguais no que se refere aos direitos e à dignidade. Afirmar que um muçulmano é inferior a um cristão ou a um ateu é uma espécie de racismo, certamente condenável. Por outro lado, não está escrito em lugar algum que todas as crenças são iguais em seus valores. A dificuldade é não confundir o debate de ideias – que é sempre legítimo – com o ódio contra as comunidades, que nunca o é.

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O que o senhor diria sobre a política dos governos europeus para os imigrantes ? E especificamente sobre o caso da França ?

Até onde eu sei, nenhum país do mundo aceita uma imigração absolutamente livre. Controlar a imigração, portanto, significa às vezes expulsar imigrantes clandestinos. Não há nada de errado nisso. Na França, o erro de Sarkozy foi querer instrumentalizar estas expulsões, com um objetivo eleitoreiro de conquistar uma parcela racista e xenófoba da população. É uma operação política e populista.

O senhor acha que o mundo se tornou mais intolerante após os ataques de 11 de setembro?

É muito provável que o crescimento do islamismo, especialmente sob a forma de terrorismo (os ataques de 11 de setembro), tenha reforçado a “islamofobia”. A questão é, ao mesmo tempo, lamentável e compreensível. Militar contra esta ou aquela ideologia, esta ou aquela religião, não é necessariamente ser intolerante. Nós temos o direito, em uma democracia, de ser antifascista, anticomunista ou antiliberal. Por que não se teria o direito de ser anticristão ou antimuçulmano ? Temos de desconfiar do politicamente correto, que pretende (sob o pretexto de tolerância) nos obrigar a pensar que todas as ideias têm valor!

O que a comunidade internacional deveria fazer para evitar que o ódio contra as religiões se propague dentro dos países?

Os países devem reforçar a laicidade, consequentemente o direito das pessoas praticarem a religião de sua escolha, assim como rejeitar todas ou mesmo combatê-las. “Eu odeio todos os deuses”, dizia Prometeu, de Ésquilo [personagem da mitologia grega]: uma frase que Marx [Karl Marx, sociólogo e filósofo alemão, fundador da doutrina comunista moderna] adorava citar. Deveríamos, hoje, colocar Marx ou Ésquilo na prisão por intolerância ou xenofobia ?

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Haveria menos ódio contra o Islã se os muçulmanos se mostrassem, eles mesmos, mais abertos e mais tolerantes. A possibilidade de escolher livremente a própria religião, de renunciar a ela (apostasia) ou rejeitar todas (ateísmo) faz parte dos direitos do homem. Enquanto os muçulmanos não aceitarem maciçamente esta ideia, eles estarão em conflito com os ideiais democráticos, assim como as pessoas que prezam a democracia estarão desconfortáveis com o Islã. A Igreja Católica demorou vários séculos antes de aceitar a democracia e a liberdade de consciência. Os muçulmanos vão acabar chegando lá. Mas, cabe a eles mudar, não aos democratas.

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