Onde quer que se escave o solo em Jerusalém, a cidade descrita e celebrada em textos preservados da Antiguidade, é provável que se encontrem fragmentos de civilizações que desapareceram na passagem do tempo. Entrar no quadrilátero da Cidade Velha, cercado de muralhas erguidas no século XVI sobre resquícios de edificações imemoriais, é imergir na sensação de reviver a história tal qual ela se desenrola nos relatos bíblicos, um intenso e emocionante passeio pelos primórdios da sociedade. Em 2021, esse pedaço do que se foi, ainda pulsante com suas ruelas e mercados apinhados, vai ganhar uma modernidade insólita: um sistema de bondinhos, como o que leva turistas ao Pão de Açúcar, no Rio de Janeiro.
Apresentado em 2019 pelo primeiro-ministro Benjamin Netanyahu, com construção prevista para começar neste ano e orçamento de 55 milhões de dólares, o bondinho de Jerusalém vai circular por 1,4 quilômetro de cabos (no início; já há planos de ampliá-lo) e conectar o lado ocidental da cidade, mais novo e de maioria judia, ao Muro das Lamentações, plantado na porção árabe (no mesmo terreno ultrassagrado onde se encontram a Igreja do Santo Sepulcro e a Mesquita de Al-Aqsa). Calcula-se que 3 000 pessoas vão circular, por hora, no bondinho. Segundo o governo, sua maior vantagem é facilitar a chegada ao ponto de peregrinação de três religiões, em geral atravancado pelos congestionamentos em vielas por onde passam 3,5 milhões de visitantes anualmente. “Os judeus esperaram 2 000 anos para ter acesso ao muro. Não podemos permitir que o trânsito nos impeça de orar”, disse o ministro das Finanças, Moshe Kahlon, responsável pela obra.
Por mais que seja apresentado como melhoria, o bondinho levanta, previsivelmente, polêmicas por todo lado. Do ponto de vista político, a obra é encarada como uma tentativa de Israel de “esconder” os palestinos do populoso bairro de Silwan, hoje rota obrigatória para o muro e a mesquita, e dessa forma reforçar seu controle sobre Jerusalém inteira e enfraquecer o status internacional da banda oriental, declarado um território sob ocupação. O ponto final da linha será uma estação operada pela Fundação Cidade de Davi, que se dedica a erguer assentamentos e buscar evidências da presença judaica nas cercanias do muro, e a passagem para a praça de peregrinação religiosa se dará por um sistema de túneis escavados na era romana e recuperados para esse fim. Ou seja, o turista só verá Silwan de cima. “Esse projeto é fundamental para Netanyahu controlar a cidade sagrada inteira”, diz Ronnie Ellenblum, professor de geografia histórica da Universidade Hebraica de Jerusalém.
Do ângulo arquitetônico, especialistas tremem diante da perspectiva de cabos e gôndolas arranhando uma paisagem que é Patrimônio da Humanidade, sem falar nos altos pilares que serão erguidos em vários pontos da cidade para sustentar o cabeamento e as três estações modernosas, de aço e vidro — a do meio no topo do Monte Sião, marco geográfico citado no Velho Testamento que hoje em dia fica próximo ao Muro das Lamentações. Uma petição assinada por 27 arquitetos de renome internacional, entre eles Moshe Safdie, Santiago Calatrava e Peter Eisenman, quer a suspensão imediata do projeto, promovido, segundo eles, “por quem coloca a agenda política acima da proteção de tesouros culturais”. “Nenhuma cidade histórica usa isso. É consenso internacional que tal sistema não é apropriado para esse tipo de local”, alerta o documento.
Nas considerações estéticas e urbanísticas, a maior preocupação é com o ar de parque de diversões que o projeto dará à cidade sagrada. “Jerusalém não é Disney”, proclama um documento produzido por setenta personalidades do país. “Essa agressão não é nenhuma manifestação de força, mas sim de insegurança e fraqueza”, fulmina o arquiteto Safdie. Enquanto o projeto do bondinho derrapa em críticas, o turista segue conhecendo Jerusalém como deve: no chão, cercado dos cheiros, sons, pedras e cores que só ela tem.
Publicado em VEJA de 26 de fevereiro de 2020, edição nº 2675