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Por que São Francisco vive uma migração sem precedentes

Fenômeno é fruto da crise das big techs e da falta de planejamento urbano

Por Ernesto Neves 23 jul 2023, 08h00

Considerada a mais progressista de todas as metrópoles, com sua cultura de vasta liberdade fincada em um sólido histórico de conquistas no campo dos direitos civis, São Francisco passou nas últimas décadas a abrigar em suas ladeiras a maior concentração de big techs do planeta. Elas sempre foram a face mais visível de uma economia fervilhante na porção norte da Califórnia, por onde se estende o Vale do Silício. Pois o cenário de hoje sinaliza para um momento diferente de Frisco, como também é conhecida. Quem caminha pelo centro avista ruas desertas, lojas fechadas e um terço dos escritórios às moscas, paisagem ocupada por moradores de rua, uma parcela deles sob o deletério efeito do opioide fentanil. O problema se agravou nessas semanas, com o encerramento das atividades de empresas como o gigante de telecomunicações AT&T e o enxugamento do Uber, além do fim das operações de dezessete grandes varejistas, como a Nordstrom e o shopping center Westfield, tão clicado com o tradicional bonde à frente. “Parece um apocalipse zumbi”, descreveu Elon Musk, o controverso dono do Twitter, que, caso a situação persista, ameaça retirar a sede da plataforma da outrora agitada Market Street.

Como outros centros urbanos mundo afora, São Francisco ainda sente as consequências do abalo sísmico provocado pela pandemia, porém em níveis mais elevados. Com a disseminação do trabalho remoto, 250 000 pessoas deixaram a região metropolitana de 2020 para cá, a frequência no centro despencou 60% e o caixa municipal acumulou prejuízo da ordem de 7 bilhões de dólares. Uma das particularidades que torna o quadro na cidade mais espinhoso do que em Chicago ou Nova York, por exemplo, tem a ver com os tremores no setor de tecnologia, espinha dorsal da economia local, que vem realizando demissões em massa, sem sinal de alívio no horizonte. A Dropbox, de armazenamento em nuvem, e a Git­Hub, de hospedagem de código-­fonte, se despediram de vez de seus escritórios por lá, enquanto a Meta, dona do Instagram e do Facebook, e o próprio Twitter, de Musk, anunciaram emagrecimento de até 80% em suas folhas de pagamento.

PORTAS 100% FECHADAS - Shopping Westfield: faltou movimento na área
PORTAS 100% FECHADAS - Shopping Westfield: faltou movimento na área (Justin Sullivan/Getty Images)

Especialistas dizem que a crise poderia ser de menor envergadura se São Francisco tivesse se mexido nos últimos anos, inclusive antes da pandemia, como outras cidades. “Não houve diversificação de atividades no centro nem investimento em moradia, um conhecido gargalo ali”, avalia o economista Lee Ohanian, da Universidade da Califórnia em Los Angeles (Ucla). O inflacionado mercado imobiliário local, que tem o metro quadrado mais caro dos Estados Unidos, já vem há tempos empurrando moradores para outros estados e fazendo expandir a população de rua (calcula-se algo como 20 000 pessoas sem teto por lá). Contribui para a explosão de preços as restritivas leis de construção que ajudam a conservar o belo casario, mas escasseiam consideravelmente a oferta — política capitaneada pela prefeita democrata London Breed, acusada de inação e permissividade em várias frentes, entre elas o combate a crimes vistos como menores, que espalham a sensação de insegurança.

Cidades americanas como Baltimore, na Costa Leste, e Salt Lake City, na banda oeste, são lembradas como bons exemplos de aglomerados urbanos que conseguiram dinamizar seus centros, embalados por fortes incentivos fiscais à construção de residências. Estavam, portanto, mais preparadas para se reabilitar quando o marasmo pandêmico passou. Outro caminho trilhado para reavivar essas áreas tem sido a conversão de escritórios ociosos em apartamentos de todos os tamanhos. Em Nova York, o prefeito Eric Adams, também democrata, calcula que estímulos dessa natureza vão resultar em 20 000 novas unidades habitacionais até 2033. Em São Francisco, não se observou até agora nenhuma injeção de ânimo semelhante. “A crise expôs a falta de planejamento urbano que já se pronunciava lá atrás”, observa Lee Ohanian, da Ucla.

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REDUÇÃO - A Meta enxugou a operação em Frisco: big techs pisaram no freio
REDUÇÃO - A Meta enxugou a operação em Frisco: big techs pisaram no freio (Justin Sullivan/AFP)

Não só nos Estados Unidos, mas em vários países se desenrola o debate sobre o futuro das zonas centrais. São áreas que costumam refletir nós sociais de alta complexidade, como o consumo de drogas e as desigualdades. A pandemia só fez lançar os holofotes sobre uma questão que já mobilizava os urbanistas diante desses esvaziados nacos das grandes cidades. Há um consenso de que a rota para reanimá-los passa pela mescla de usos — de escritórios a moradias, com muito comércio e serviço ao redor. “Estudos indicam que o encurtamento do trajeto entre a casa e o trabalho estimula a vontade de uma rotina presencial, assim como o desejo de circular a pé, aproveitando as opções de lazer e cultura”, diz a pesquisadora Tracy Loh, do Brookings Institution, de Washington. Cartão-­postal que atraiu aventureiros no século XIX, se transformou em paraíso hippie nos anos 1960 e mais recentemente passou a abrigar a poderosa indústria da internet, São Francisco precisa agora se reinventar outra vez.

Publicado em VEJA de 26 de julho de 2023, edição nº 2851

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