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Por que Kamala Harris perdeu as eleições nos EUA

O republicano Donald Trump ganhou com folga uma corrida que prometia ser apertadíssima

Por Amanda Péchy Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 6 nov 2024, 16h07 - Publicado em 6 nov 2024, 12h41
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  • Kamala Harris botou fogo na corrida eleitoral americana quando ascendeu para substituir Joe Biden, o presidente dos Estados Unidos, que desistiu da reeleição sob a pressão de um Partido Democrata que não achava que ele era capaz de derrotar Donald Trump. Com direito a uma profusão de memes na internet, animação de um eleitorado cansado e um recorde de 1 bilhão de dólares arrecadados para a campanha, além de pesquisas que revelavam um cenário acirradíssimo, ela tinha altas chances de chegar à Casa Branca.

    Eis que, na madrugada desta quarta-feira, 4, a coisa desandou: o candidato republicano a atropelou desde o início da apuração dos votos, até cravar a vitória nas primeiras horas da manhã.

    As autópsias sobre a derrota de Harris serão profusas e devem continuar a aparecer com o tempo. Mas, como um primeiro rascunho da história, há alguns marcadores que se já destacam.

    Falta de clareza nas propostas

    Em um eco da derrota de Hillary Clinton em 2016, Harris passou muito tempo tentando argumentar que Trump não era capaz de ser presidente e muito pouco tempo transmitindo uma mensagem coerente sobre por que ela seria melhor para o cargo.

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    Apesar de sair vitoriosa do único debate contra Trump, em 10 de setembro, ela se atrapalhava quando desafiada a explicar sua agenda de forma convincente, em especial no tocante às questões mais importantes para o eleitorado (economia e imigração). Ela também se “embananou” na tentativa de explicar suas mudanças de opinião (por exemplo, ela se opunha duramente ao fracking, um método de extração de petróleo e gás, e depois voltou atrás diante da necessidade de conquistar eleitores em estados onde a tecnologia controversa é empregada).

    O pato manco

    Harris também não conseguiu encontrar uma maneira eficiente de se distanciar de Biden, a quem mais da metade dos americanos (56,3%) desaprova. Além disso, cerca de dois terços dos eleitores dizem acreditar que a nação está indo na direção errada. Era uma posição desconfortável: ao mesmo tempo que fez parte do governo e tentou não manchar o legado de seu chefe, precisava mostrar por que ela seria diferente.

    Foi marcante um momento numa entrevista ao programa de televisão The View, quando Harris foi questionada se teria feito algo diferente de Biden nos últimos quatro anos. “Não há nada que me venha à mente”, respondeu desajeitadamente, para horror de seus assessores. Nas semanas seguintes, tentou se recuperar, dizendo à emissora americana CNN: “(Meu governo) não será uma continuação do governo Biden”. Mas o dano já estava feito.

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    Economia

    Apesar de ter feito um bom trabalho no controle da inflação, a Casa Branca de Biden não teve tempo, ou não foi capaz, de fazer as melhorias na economia chegarem à população, que ainda sente no bolso a alta nos preços de casas e compras no supermercado.

    “Durante a pandemia de covid-19 e nos anos seguintes, parece que os gastos do governo com estímulos à economia foram parcialmente culpados pela inflação”, explica a VEJA Daniel Mallinson, doutor em ciência política da Universidade Estadual da Pensilvânia.

    A proximidade de Harris com o governo transferiu para ela a insatisfação do eleitorado com a economia, resultando em uma punição de quem a via como “incumbente”. Os democratas parecem ter sofrido de uma tendência mais ampla entre partidos governistas em todo o mundo desenvolvido. Buscando mudanças, os governos no Reino Unido, Alemanha, Itália, Austrália e, mais recentemente, no Japão enfrentaram reveses eleitorais ou perderam poder. O próprio Trump perdeu há quatro anos. França e Canadá podem muito bem entrar na lista.

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    Os detalhes variam de país para país e de partido para partido, mas grande parte da história é a mesma: a pandemia e a turbulência subsequente. Em quase todos os lugares, a inflação e as consequências da pandemia deixaram os eleitores irritados e ressentidos. Isso tirou legitimidade dos partidos governantes — e muitos deles não eram especialmente populares, para começo de conversa.

    “Deixando de lado quem eram os candidatos e as campanhas, se me dissessem que os democratas têm um incumbente impopular, esperaria que eles perdessem. A disputa só foi acirrada por causa das fraquezas de Donald Trump. Sua vitória ocorreu apesar de, e não por causa de, suas propostas e personalidade”, disse a VEJA Jon Green, professor de ciência política da Universidade Duke, na Carolina do Norte.

    Rival complexo

    Ao mesmo tempo, o público e a base de Trump ficaram tão acostumados à onda implacável de notícias negativas sobre ele que quase não pareceu se importarem quando foi indiciado por 91 acusações criminais e condenado por 34 delas, ou que ele tenha sido acusado e condenado por abuso sexual duas vezes. Nem pareceu importar que a maior parte do que Trump diz é falso. Ou que ele repita sandices como o projeto de processar “inimigos políticos” com o Departamento de Justiça e as promessas de expurgar do governo federal os “marxistas” e varrer a “classe política doente que odeia nosso país”.

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    “Trump é tão famoso e conhecido, particularmente por causa de sua reputação como um fanfarrão e estrela de reality show, que as pessoas estão dispostas a acreditar no que querem sobre ele. Frequentemente, descartam sua retórica mais incendiária, mesmo quando ele está mentindo”, afirmou a VEJA John Cluverius, cientista político da Universidade de Massachusetts Lowell. “Sua relação elástica com a verdade ajuda os eleitores a acreditarem no que querem”, resume ele.

    De fato, a campanha presidencial de 2024 — muito mais do que as eleições de 2016 ou 2020 — marcou um momento de polarização máxima no diálogo político dos EUA. O debate político se tornou uma fossa de narrativas falsas, memes inventados e deep fakes — principalmente impulsionados pelas inúmeras mentiras de Trump. Foi um momento verdadeiramente orwelliano quando Trump, o mais eficaz fomentador do ódio na história política americana, declarou que era Harris quem estava comandando uma “campanha de ódio” e descreveu a violenta invasão ao Capitólio em 6 de janeiro de 2021 como um “dia de amor”.

    Guerra cultural

    O cenário político também mudou, já que questões culturais passaram a desempenhar um papel enorme — possivelmente equivalente à economia. Em outras palavras, a tomada do Partido Democrata por questões progressistas, conhecidas como “woke” (definido pela defesa dos direitos de minorias como a população preta e a comunidade LGBTQIA+), foi devastadora para a campanha de Harris, especialmente porque Trump e os republicanos a pintaram com sucesso como uma esquerdista irreconciliável.

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    “Essa não é apenas uma campanha política, essa é realmente uma guerra cultural que está acontecendo. E desta vez é mais pronunciado do que nunca. Desta vez, arrisco-me a dizer, é uma verdadeira eleição do Armagedom”, disse o estatístico americano John Zogby.

    O resultado foi que, apesar de uma plataforma focada em reconquistar a classe trabalhadora do ponto de vista econômico, Biden e Harris perderam muitos eleitores culturalmente.

    Questão de gênero

    Muitos temem que os Estados Unidos não estejam prontos para uma presidente mulher. Afinal, Trump concorreu três vezes e, das duas que venceu, havia uma mulher do outro lado do ringue.

    Embora ainda não existam evidências concretas dessa teoria, algumas das pesquisas mais decisivas na corrida mostraram vantagens esmagadoras para Harris entre as mulheres — mas margens grandes e crescentes para Trump entre os homens. Seu público-alvo, homens jovens que se sentem marginalizados por causas progressistas que tendem a favorecer mulheres, indivíduos LGBTQIA+ e minorias, não parece conseguir engolir uma mulher na Casa Branca.

    De acordo com a pesquisa do Institute of Politics da Universidade Harvard, a quantidade de eleitores homens com menos de 30 anos que se identificam como republicanos aumentou em 7 pontos percentuais desde 2020. John Della Volpe, diretor do instituto, diagnosticou que Trump conquistou muitos desse grupo “ao tecer uma mensagem hipermasculina de força em meio à sua narrativa mais ampla que mina a confiança nas instituições democráticas”.

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