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Populismo autoritário deve dominar ano recorde em eleições no mundo

Desde a instituição do sufrágio universal na França, em 1792, nunca houve um período com tamanha concentração de eleições

Por Ernesto Neves Atualizado em 4 jun 2024, 09h24 - Publicado em 21 jan 2024, 08h00

O ano de 2024 entrará para a história como o maior exercício de democracia já experimentado pela humanidade. Desde a instituição do sufrágio universal na França, em 1792, nunca houve um período com tamanha concentração de eleições. Cerca de quatro bilhões de pessoas, metade da população mundial, vão exercer seu direito de escolha em 68 países — resultado mais do que louvável do fortalecimento do regime democrático que, nas últimas décadas, substituiu ditaduras em boa parte da Ásia, África, Europa Oriental e América Latina. Entre as dez nações mais populosas do mundo, oito vão votar: Estados Unidos, a mais antiga e poderosa democracia, Índia, a maior em população, Brasil, México, Paquistão, Rússia, Indonésia e Bangladesh.

Essa gigantesca marcha às urnas, no entanto, não deve ser tranquila — prevê-se no seu decorrer um dilúvio de fake news, brigas renhidas por resultados e a formação de uma onda autoritária capaz de chacoalhar o globo. “Estão em jogo os rumos da ordem internacional”, diz Leslie Vinjamuri, da Chatham House, de Londres.

Tamanho volume de disputas eleitorais é uma raridade que só deve se repetir em 2048. A primeira do ano aconteceu em 7 de janeiro, em Bangladesh, com resultado controverso: a primeira-ministra, xeica Hasina, venceu pela quarta vez com a oposição fora do páreo, abstenção de 60% e a suspeita de que o país caminha para o partido único. Uma semana depois, foi a vez de Taiwan, um dos pontos mais tensos do planeta, onde foi eleito presidente Lai Ching-te, partidário da independência da China, que por sua vez não reconhece a soberania da ilha.

AMEAÇA AUTORITÁRIA - O ditador venezuelano Nicolás Maduro, o populista Modi (de barba) e o todo-poderoso “czar” Putin (à dir.): o voto não resolve todos os problemas
AMEAÇA AUTORITÁRIA – O ditador venezuelano Nicolás Maduro, o populista Modi (de barba) e o todo-poderoso “czar” Putin (à dir.): o voto não resolve todos os problemas (Gaby Oraa/Getty Images; Sam Panthaky/AFP; Pavel Bednyakov/AFP)

Na segunda 15, os Estados Unidos deram início formal à corrida pela Casa Branca, uma prova de obstáculos de 295 dias que se encerra em 5 de novembro (leia na pág. 46). A arrancada foi nas primárias republicanas de Iowa, nas quais Donald Trump, mesmo enrolado em processos judiciais, confirmou seu favoritismo conquistando 51% dos votos. Tudo aponta para uma disputa entre ele e o virtual rival democrata, o presidente Joe Biden, repetindo o embate de 2020. “Não há dúvidas de que será uma eleição disputada voto a voto”, antecipa Henry Olsen, cientista político do Centro de Ética e Políticas Públicas de Washington.

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Na maratona de votações globais, as questões mais prementes são as de sempre: emprego, inflação, segurança e confiança no futuro. No pano de fundo, porém, agita-se a bandeira do nacionalismo, um fator presente em quase todos os pleitos na última década, insuflado pelo fluxo descontrolado de imigrantes ilegais em busca de vida melhor. O tema é explorado incessantemente por populistas como Trump, que classificou quem cruza a fronteira com o México de “terrorista”, e empurra para um novo patamar de influência — inclusive, em alguns casos, para o próprio governo — partidos ultradireitistas na Itália, Portugal, França, Alemanha e Holanda. Sondagens apontam a subida nas intenções de voto da bancada Identidade e Democracia, de viés ultranacionalista, na renovação do Parlamento Europeu, em junho, uma megaeleição que mobiliza 400 milhões de pessoas nos 27 países do bloco. Nesse rol à direita, a moda lançada por Trump de contestar resultados vem fazendo estragos. Em duas votações recentes, na Polônia e na Guatemala, os conservadores tentaram de todas as formas — ameaças, protestos, ações na Justiça, puxadas de tapete — cancelar sua derrota. Felizmente, não conseguiram.

Outro ponto a considerar nesse exercício planetário de escolha é o fato de que ir às urnas nem sempre é sinônimo de democracia. Na Rússia, Belarus, Irã e Venezuela, regimes autoritários bloqueiam a possibilidade de mudanças significativas mesmo com o direito a voto. Até onde há liberdade existe risco: relatório divulgado pelo Instituto Internacional para a Democracia e Assistência Eleitoral (Idea), de Estocolmo, constatou a progressiva erosão das normas democráticas na Hungria, Polônia, Turquia e Eslováquia, entre outras nações com votações marcadas este ano. Entidades de direitos civis também acenderam o alerta para a Índia, governada há quase dez anos pelo primeiro-­ministro Narendra Modi, que usa e abusa de sua popularidade entre a maioria hindu para reprimir opositores e minorias, sobretudo muçulmanos. “Políticos de viés autoritário estão implementando uma série de ações sofisticadas para manter ou ampliar seu poder”, diz Tony Banbury, cientista político da Fundação Internacional para Sistemas Eleitorais. Em ano de muitas e variadas eleições, a democracia vai requerer mais vigilância do que nunca.

Publicado em VEJA de 19 de janeiro de 2024, edição nº 2876

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