Quase seis anos depois de chegar à Presidência da França, em seu segundo mandato, que termina em 2027, Emmanuel Macron iniciou nesta semana sua mais ousada e impopular empreitada, a reforma do sistema de pensões. A peça fundamental do plano é o aumento da idade mínima de aposentadoria de 62 para 64 anos. Prometida por Macron durante a campanha de reeleição, no último ano, a medida é considerada vital para estancar o déficit previdenciário, problema que vem se agravando com o envelhecimento da população. “Teremos de trabalhar mais se quisermos deixar um modelo justo e duradouro para nossos filhos”, afirmou. A reação foi rápida, enfática e corporativista, bem ao gosto gaulês. Mais de 1 milhão de franceses saíram às ruas de 200 cidades. Na maior das marchas, em Paris, jovens exibiam o slogan “Aposentadoria antes da artrite”. As greves — uma outra instituição do país — se espalharam por refinarias, transportes, serviços públicos e escolas de norte a sul, afetando Lyon, Marselha, Toulouse, Nantes e Bordeaux.
Reformar a onerosa Previdência francesa é tarefa necessária, sob o risco de arrebentar os cofres, porque a conta não fecha. Mas é também tentativa inglória. Em 1995, o então presidente Jacques Chirac arquivou uma proposta depois de paralisações que duraram semanas. Anos depois, Nicolas Sarkozy tentou novamente mexer no sistema, sem sucesso. O próprio Macron lançou uma proposta, em 2019, mas teve de desistir com a eclosão da pandemia. O alto grau de proteção social é celebrado na França, que resiste ao capitalismo mais liberal de economias como o Reino Unido. Os franceses começam a receber o benefício, em média, aos 62 anos, contra 63 na Itália, 64 na Alemanha e 66 na Holanda. Graças ao aumento da expectativa de vida, os homens têm, em média, 23 anos de benefício, e as mulheres, 27. O problema é agravado pela redução no número de jovens. Em 2000, havia 2,1 trabalhadores contribuindo para cada aposentado, número que caiu para 1,7 em 2020. Como resultado, o rombo anual alcançou 10 bilhões de euros, com previsão de crescer 40% até o fim da década. O país já emprega 14% do PIB para o pagamento de pensões, bem mais que a vizinha Alemanha (10%) e os membros da OCDE, clube de nações ricas, com média de 8%. “A França está gastando muito além do que pode”, resume Jean-Marc Daniel, economista da European Business School, em Paris.
A proposta acontece em momento complexo, com a economia andando de lado e intensa pressão inflacionária. Impulsionada pela guerra na Ucrânia, a escalada nos preços chegou a 7% nos últimos doze meses. E não há refresco previsto no curto prazo. Calcula-se que as tarifas de energia vão subir 15% ao longo de 2023, sobrecarregando consumidores e pequenas empresas. Pesquisas feitas nas últimas semanas atestam a rejeição quase unânime. Somente 36% declaram apoio à gestão de Macron. Na faixa entre 35 e 49 anos, 77% disseram ser contrários à reforma. A questão também obteve a proeza de unir o espectro político. Marine Le Pen, do partido ultradireitista Reagrupamento Nacional, classificou a proposta como “terrivelmente injusta”. Do lado oposto, na extrema esquerda, Jean-Luc Mélenchon, do França Insubmissa, iniciou campanha em sentido inverso, de redução da idade mínima de aposentadoria para 60 anos. Em tom inflamado, ele afirmou que o buraco orçamentário deveria ser coberto com o aumento de impostos para os ricos. Uma bandeira que, segundo os críticos, tem como objetivo reverter a derrocada da esquerda observada nas últimas eleições.
Macron encara a reforma previdenciária como o principal legado de seu governo, eleito pela primeira vez em 2017 com a promessa de modernizar o pesado Estado francês. O presidente vem correndo contra o tempo para costurar uma aliança entre deputados da Assembleia Nacional, já que sua coalizão centrista, o Renascimento, conta com 250 parlamentares, 39 a menos que o necessário para obter maioria. As fichas estão concentradas numa incerta adesão do Partido Republicano, oposicionista, mas que no passado defendeu as mesmas mudanças. Outra saída em estudo é a imposição da reforma por decreto, uma possibilidade prevista pela Constituição. A jogada, no entanto, é arriscada e raramente aplicada. Isso porque pode desencadear um voto de não confiança da oposição, levando a eleições antecipadas. “Tudo vai depender do humor das ruas”, diz Guy Groux, especialista em mercado de trabalho da universidade Sciences Po, de Paris. “Se as greves prosseguirem, é grande a chance de o projeto naufragar”. Com nova onda de mobilização prevista para o dia 31, Macron terá de desarmar o combatente espírito dos franceses se quiser concluir seu plano. O nó: o humor das ruas não vai nada bem.
Publicado em VEJA de 1º de fevereiro de 2023, edição nº 2826