Parasita, a obra-prima do sul-coreano Bong Joon-ho, quebrou a banca no Oscar de 2020 — levou os prêmios de melhor filme (o primeiro não falado em inglês nos 92 anos da festa de Hollywood), melhor diretor (dobradinha rara), melhor roteiro original e, claro, melhor filme internacional, a nova alcunha para produções estrangeiras. Ao agradecer a láurea, numa das quatro vezes em que subiu ao palco, Bong prometeu encher a cara. Cumpriu a promessa, dignamente, em um bar de Los Angeles, diante de uma banda de k-pop — o gênero musical nascido na Coreia do Sul que usa e abusa dos efeitos audiovisuais, predominantemente adolescente e que, de alguns anos para cá, disseminado pelo YouTube, conquistou o mundo. Depois da coroação, o cineasta fez troça. “Embora eu esteja aqui, o BTS tem 3 000 vezes mais poder e influência do que eu”, brincou, numa alusão à banda de meninos que em abril de 2019 ocupou o topo do ranking global da Billboard.
Juntar Parasita e k-pop não é mera coincidência. Foi um modo de mostrar a força cultural de um país que cresce e aparece — apesar de todo o fosso social que o drama (ou será comédia? Ou suspense?) leva à tela, magistralmente, em uma crítica muito mais contundente que a feita por Bacurau pelos lados de cá. A proeminência da Coreia do Sul, que as estatuetas iluminaram, impõe uma indagação, um tanto livre, olhando-se ao redor, para a vizinhança asiática: que país serviria de contraponto ao rugir sul-coreano, um modo didático de entender o crescimento que emana de Seul? O Japão. O inimigo histórico, de relações mercuriais, desde o período da ocupação nipônica, que foi de 1910 a 1945, com a derrota do Eixo na II Guerra Mundial. Muito tempo se passou, houve até uma Copa do Mundo dividida entre os dois países, em 2002, mas a temperatura cisma em não baixar. Brigava-se com armas, antes, e agora com manifestações culturais. A unanimidade em torno de Parasita, ressalve-se, não apaga a história inigualável de beleza e contrição, aventura e drama, do cinema japonês, num arco que vai de Yasujiro Ozu (1903-1963) a Akira Kurosawa (1910-1998) e chega às animações, os animes, cujo ápice é A Viagem de Chihiro (leia a reportagem). Não se trata, portanto, de dizer que a Coreia do Sul aplicou um golpe de tae kwon do no Japão, mas há comparações interessantes demais para ser descartadas — nas artes, na economia, no cotidiano.
No pós-guerra, o Japão brotou como uma potência exportadora de tecnologia e, por que não, de um estilo de vida. Nos últimos trinta anos, a Coreia começou a ocupar esse espaço — com a música e com o cinema, mas também com a produção de manufaturados, a partir de um processo chamado de “indústria sem chaminés”. No mercado de eletrônicos, a Samsung ultrapassou em faturamento os grandes concorrentes japoneses. No campo de automóveis e cosméticos, idem. Tudo é K. Tem o k-pop, mas há também o k-beauty etc. Na educação, com uma política rigorosa e investimentos públicos pesados, a Coreia deu o mais espetacular salto em todo o mundo. Trata-se de um país capitalista, sim, de louvação à iniciativa privada — mas com presença maciça do Estado. No cinema, para não perder o fio da meada, houve um momento de virada que culminou com Parasita. Em 1993, em um determinado período do ano, todas (todas!) as salas foram ocupadas por Jurassic Park, de Steven Spielberg. Naquele ano, a bilheteria de produções locais alcançou apenas 2% do total — desde então, sentindo-se jurássicos, os coreanos mudaram o jogo, e a Embrafilme sul-coreana alimentou um amplo sistema de cotas. Atualmente, 56% do caixa de cinema vem de Bong e de outros grandes nomes, como Park Chan-wook (Oldboy).
E, no entanto, apesar de mostrar as garras à base de soft power, a Coreia do Sul não é só Oscar, festa e rapapés. As desigualdades são muitas, e os escândalos de corrupção, contumazes — cassada em março de 2017, a ex-presidente Park Geun-hye foi condenada a 24 anos de prisão. Não há melhor catálogo dessas discrepâncias para revelar o porão que existe debaixo da superfície, o fosso entre ricos e pobres, do que Parasita. Eis a ironia: a joia da coroa sul-coreana traz embutidas, como um cavalo de Troia, as denúncias de uma sociedade apodrecida. De acordo com o coeficiente de Gini, medidor de desigualdade criado pela ONU, o país está entre os mais mal colocados entre os membros da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), o clube dos privilegiados. Aparece atrás do Japão. Na Coreia, os 10% mais ricos concentram 45% da renda, número que quase dobrou em quinze anos — a título de comparação, nesse quesito, o da vergonha de ter duas categorias de cidadão, o Brasil fica na rabeira, à frente apenas de um punhado de nações africanas e do Suriname.
Nesse aspecto, o Japão, um pouco mais equilibrado, sorri timidamente — sabe que a Coreia ainda tem chão para caminhar. O governo de Tóquio reconhece que não pode perder oportunidades, e a próxima está logo ali. A Olimpíada, entre 24 de julho e 9 de agosto, será uma vitrine para mostrar o que tem de mais avançado e competitivo, como fez nos Jogos de 1964, também realizados na capital japonesa. Não por acaso, no encerramento dos Jogos de 2016, no Rio de Janeiro, o primeiro-ministro Shinzo Abe apareceu vestido com o boné vermelho de Super Mario, o popular personagem da franquia de videogames da Nintendo, criado ainda nos anos 1980. Os coreanos querem fazê-lo dançar ao som de k-pop.
Publicado em VEJA de 19 de fevereiro de 2020, edição nº 2674