Faltando sete meses para as eleições presidenciais dos Estados Unidos, até as rochas onde Elon Musk quer fincar uma civilização em Marte (leia o artigo de Fernando Schüler, na pág. 16) sabem que os protagonistas da batalha final serão o presidente Joe Biden, pelo lado democrata, e seu antecessor, Donald Trump, pelo republicano. Empatados tecnicamente nas pesquisas, os dois disputam voto a voto a vitória nas urnas, tal qual aconteceu em 2020, com uma diferença: a presença de um terceiro candidato, sem chance nenhuma de ganhar, mas com grande capacidade de atrapalhar o jogo. É Robert Francis Kennedy Jr., 70 anos, sem partido, bem-apessoado e bronzeado advogado de Malibu, onde se concentram os ricaços da Califórnia. Além de mais jovem do que os dois adversários numa votação em que o fator idade é crucial (Biden tem 81, Trump completa 78 em junho), faz questão de propagandear em discursos e entrevistas tanto o sobrenome famoso de um clã historicamente democrata quanto teorias conspiratórias pregadas no ideário do trumpismo. É nesse cenário que ele se mexe para cavar espaço entre eleitores nas duas frentes. “Sou a oportunidade de restaurarmos este país, sua democracia e autoridade moral”, diz.
RFK Jr., como gosta de ser chamado (reeditando as iniciais pelas quais o pai era conhecido), é filho do senador Robert Kennedy, alvejado fatalmente em uma primária democrata quando tentava se candidatar à Casa Branca em 1968, e sobrinho do ex-presidente John Kennedy, assassinado a tiros em 1963. A maioria das pesquisas o coloca com cerca de 10% das intenções de voto — a melhor performance de um candidato independente em décadas. “Pesquisas mostram que Kennedy tira mais votos de Biden, mas ele já causa preocupação também a Trump”, diz Grant Davis Reeher, professor de ciências políticas da Universidade Syracuse. RFK Jr. já conseguiu assinaturas suficientes para aparecer nas cédulas em swing states, aqueles que definem eleições, como Arizona, Geórgia, Nevada, Michigan e New Hampshire. Anunciada recentemente, sua vice, Nicole Shanahan, 38 anos, investidora e ex-mulher de Sergey Brin, fundador do Google, contribuiu para aumentar seu apelo entre os jovens — justamente a fatia do eleitorado que em 2020, sem opção entre Biden e Trump, acabou votando no democrata como mal menor.
Candidato a ser agora a terceira via, Kennedy, como toda a família, foi democrata de carteirinha. Vestiu essa camisa até 2023 e se projetou no início dos anos 2000 como advogado ambientalista, chegando a ser cotado para ocupar a direção de órgãos do governo na área. Ao longo da última década, porém, tornou-se mais conhecido pelo vigoroso discurso contra a vacinação infantil, que, replicando teorias amalucadas, insiste em associá-la a doenças como autismo. A lista de sandices inclui ainda duvidar da relação entre HIV e aids e associar o tratamento da água que o público consome a disfunções sexuais. E, claro, ele faz parte da turma de céticos contumazes que vê o dedo da CIA nos assassinatos do pai e do tio.
Durante a pandemia, não perdeu chance de disparar bizarrices a respeito da origem do vírus da covid-19, dos supostos males da vacina e do lockdown. “Até na Alemanha de Hitler as pessoas podiam cruzar os Alpes e se refugiar na Suíça e se esconder no sótão, como Anne Frank. Hoje os mecanismos em vigor nos impedem de fugir. Ninguém consegue se esconder”, proclamou em uma manifestação antivacinas em Washington. Por essas e outras, chegou a ser temporariamente banido de redes sociais. Em 2021, lançou um livro demonizando o médico Anthony Fauci, conselheiro da Casa Branca no combate à pandemia que diversas vezes entrou em choque com Trump. Por suas posições, Kennedy foi solenemente renegado pela família, que recentemente fez questão de se encontrar em peso com Biden para manifestar seu apoio.
Candidatos independentes como Kennedy não têm nenhuma chance de emperrar a engrenagem da máquina eleitoral dos partidos tradicionais, mas são capazes de causar soluços e imprevistos, ainda mais em uma eleição como a deste ano, que deve ser decidida por margem muito estreita de delegados no Colégio Eleitoral. “Nem Biden nem Trump podem se dar ao luxo de perder qualquer voto”, diz Alice Stewart, consultora do Partido Republicano. Ao longo da história, outsiders já mostraram que podem ser um fator de risco para os políticos tradicionais. Na disputada eleição de 2000, Ralph Nader, do Partido Verde, amealhou 3 milhões de votos que fizeram muita falta ao democrata Al Gore e contribuíram para a vitória do republicano George W. Bush. Anos antes, em 1992, outro azarão, o bilionário conservador Ross Perot, sacudiu a tranquilidade das legendas mais conhecidas ao atrair 19% do eleitorado, boa parte insatisfeita com a conjuntura econômica da época, e fortalecer o democrata Bill Clinton. Resta ver que prejuízo Kennedy poderá causar desta vez, e a quem. Tanto Biden quanto Trump que se cuidem.
Publicado em VEJA de 26 de abril de 2024, edição nº 2890