O que está em jogo na muito anunciada contraofensiva da Ucrânia
Trata-se de uma encruzilhada decisiva da guerra. Para os dois lados, abrir flancos e mostrar fraqueza nos combates dos próximos meses pode ser fatal
Iniciada em fevereiro de 2022, a invasão da Ucrânia pela Rússia resultou, como era de se prever diante do enorme desequilíbrio de forças, na rápida tomada pelos russos de uma faixa ao longo da fronteira, atualmente calculada em cerca de 15% do território ucraniano. A inesperada resistência fez a guerra empacar por alguns meses, período em que a posição dos dois lados ganhou contornos mais nítidos. As forças de Kiev, treinadas e armadas com toneladas de equipamentos fornecidos pelos Estados Unidos e demais integrantes da Otan, a aliança militar ocidental, conseguiram deter o avanço e, ao mesmo tempo, expor ao mundo as deficiências do Exército Vermelho. As tropas do Kremlin, por sua vez, fincaram pé na região em seu poder, enquanto aprendiam com seus erros e examinavam de perto a tática do adversário. Agora, ao que tudo indica, a pausa acabou e os combates voltaram a se acirrar na linha de frente — sinais do início da fartamente anunciada contraofensiva ucraniana. Dessa vez, no entanto, a aposta é mais alta e pode definir o rumo da guerra.
Os movimentos bélicos das próximas semanas e meses são cruciais para a Ucrânia, de um lado, assegurar a seus aliados que a avalanche de armas e dólares que recebeu não foi em vão e que tem chance de negociar o fim do conflito em posição de força, e para a Rússia, de outro, provar ao mundo — e, mais especificamente, à população russa — que seu poderio militar não é páreo para o vizinho. “À medida que as forças ucranianas penetrarem nas áreas ocupadas, elas estarão cada vez mais expostas à linha de tiro de artilharia russa”, explica Jack Watling, pesquisador do Royal United Services Institute, de Londres.
Nestes primeiros dias de contraofensiva, a Ucrânia anunciou a retomada de oito vilarejos, área equivalente a pouco mais de 100 quilômetros quadrados. “O avanço é muito difícil e parece lento quando se olham os números, mas ele é constante”, diz Hanna Malyar, vice-ministra da Defesa ucraniana. Os combates se concentram até agora em dois pontos: nas franjas de Donbas, a região por onde os invasores entraram para, no embuste montado pela fábrica de fake news do Kremlin, liberar a população perseguida pela “nazificação” do governo de Kiev, e mais ao sul, na direção do porto de Mariupol, que passou meses sob bombardeio até ser dominado. “Alcançamos um sucesso parcial nos últimos dias”, avalia a ministra Malyar.
A investida em Donbas é simbólica — focos de separatistas alimentados pela Rússia, as duas províncias locais foram as primeiras ocupadas e, posteriormente, anexadas por Moscou, que até hoje briga por seu controle total, tendo o combate mais recente e sangrento se dado em Bakhmut (seis dos vilarejos retomados ficam nos seus arredores). O avanço no sul tem objetivo mais prático: cortar a ligação por terra de Moscou com a Crimeia, província ucraniana que a Rússia ocupou ilegalmente em 2014 e hoje importante centro de abastecimento das tropas invasoras. O reforço da posição defensiva russa nessa faixa inclui minas, trincheiras, drones e água — o rompimento de uma barragem, atribuído aos russos, inundou boa parte do terreno. “É uma operação marcada pelo alto desgaste de soldados e equipamentos que se defrontam com fortificações, campos minados e fossos antitanques”, diz Federico Borsari, do Center for European Policy Analysis.
A Rússia, por sua vez, intensificou as investidas com mísseis e drones contra Kiev, cercada por forte defesa antiaérea, e outras cidades mais vulneráveis — em Kryvy Rih, onde o presidente Volodymyr Zelensky nasceu, uma saraivada de mísseis destruiu um prédio residencial, matando ao menos doze pessoas. Em um passo além no uso do arsenal nuclear como ferramenta de pressão, armas táticas russas começaram a ser instaladas em Belarus, algumas delas, segundo o ditador aliado Alexander Lukashenko, três vezes mais potentes do que as bombas atômicas lançadas sobre Hiroshima e Nagasaki no fim da II Guerra. Relatórios da frente de batalha atestam que as tropas russas em terra estão mais treinadas, organizadas e capazes de montar ataques eficazes como o que inutilizou vários blindados ucranianos, inclusive poderosos tanques alemães Leopard, mostrado em fotos divulgadas por Moscou.
Em entrevista a jornalistas pró-Kremlin, o presidente Vladimir Putin afirmou sem confirmação independente que a Ucrânia, nos últimos dias, perdeu três vezes mais tanques do que a Rússia. Na mesma ocasião, fez um raro reconhecimento público da existência de escassez de munição na frente de batalha e de conflitos entre o comando militar e Yevgeny Prigozhin, líder do Wagner, tropa de mercenários que tem sido fundamental para a ocupação da Ucrânia.
Em paralelo ao início da contraofensiva ucraniana, representantes de cerca de cinquenta países reunidos no Grupo de Contato para a Defesa da Ucrânia reunidos em Bruxelas reiteraram sua intenção de apoiar Kiev por tempo indefinido e continuar armando e treinando as forças ucranianas, inclusive no manejo dos caças F-16, que devem entrar proximamente em ação. Os Estados Unidos destinaram mais 40 bilhões de dólares em apoio militar, humanitário e financeiro para Kiev e aliados europeus começam a reservar recursos para a reconstrução do país. “Quanto mais ganhos a Ucrânia tiver, mais forte será sua posição na mesa de negociação”, afirmou Jens Stoltenberg, secretário-geral da Otan. Por mais alvissareiras que sejam as manifestações de apoio, porém, tanto a Ucrânia quanto a Rússia sabem que a rede de suporte tem prazo de vencimento e, sem sinais concretos de que está dando certo, acabará corroída pelo alto custo financeiro, pelo impacto que tem sobre a população dos países aliados e até pelo risco de explosão de outras guerras na Europa (leia mais). No solo ucraniano enlameado por inundação e chuvas, os dois lados lutam por seu futuro.
Publicado em VEJA de 28 de Junho de 2023, edição nº 2847