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O programa espanhol para reabilitar criminosos de colarinho-branco

O sistema penitenciário testa um plano de passo a passo inspirado nos Alcoólicos Anônimos

Por Julia Braun Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 4 jun 2024, 13h36 - Publicado em 18 jun 2021, 06h00
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  • Muito já se estudou sobre os meandros da mente criminosa de assassinos, estupradores e ladrões contumazes. Em Sevilha, na Espanha, o psiquiatra Sergio Ruiz, diretor do Hospital Psiquiátrico Penitenciário local, resolveu enveredar por uma outra trilha, esta pouco explorada: os traços de personalidade, as motivações e os valores morais dos corruptos. Ao fim de sua pesquisa, Ruiz elaborou um programa vagamente inspirado no elogiado sistema de passos dos Alcoólicos Anônimos e produziu, assim, a primeira rehab voltada para criminosos de colarinho-branco. Encampado pelo Ministério do Interior e pela Secretaria de Instituições Penitenciárias, o programa vem sendo aplicado desde março a mais de 100 detentos — sendo o mais conhecido deles Iñaki Urdangarin, cunhado do rei Felipe VI — a título experimental, na expectativa de que, se o esforço for bem-sucedido, os reabilitados possam ser reintegrados à sociedade sem risco de ceder a novas tentações.

    Apelidado de Pideco (Programa de Intervenção em Crimes Econômicos, em português), o projeto tem duração prevista de dez a onze meses, durante os quais os participantes são submetidos a sessões semanais de terapia em grupo: sentados em círculo, cada um é convidado a compartilhar sentimentos e analisar o próprio comportamento. Nos encontros, os psicólogos, treinados para “se conectar” com os presos, os encorajam a assumir a culpa por seus delitos e refletir sobre ética e integridade. Segundo o psiquiatra Ruiz, três fatores distinguem os criminosos de colarinho-branco: narcisismo, egocentrismo e enorme capacidade de justificar, ou atribuir a outros, os seus deslizes.

    À medida que o tratamento avança, os infratores são convidados a prestar serviços comunitários e ajudar pessoas desfavorecidas, como forma de desenvolver empatia. Outra ação estimulada é o pedido de perdão a quem prejudicaram. “Os crimes econômicos fazem muitas vítimas indiretas. Conversar com alguém que tenha sido afetado por sua ação ajuda o detento a se colocar no lugar dele”, explica Ruiz. O programa de rehab não proporciona redução de pena, mas influi na avaliação de pedidos de liberdade condicional e outras regalias. O obje­ti­vo principal é evitar casos de reincidência. “Idealmente, e se a sentença permitir, eles podem até voltar a exercer as antigas funções”, acredita o psiquiatra.

    Entre os presos que participam da primeira edição do programa, os mais conhecidos são o ex-vice-­primeiro-ministro Rodrigo Rato, condenado por desvio de dinheiro, e o ex-atleta olímpico e ex-duque Urdangarin. Casado com a infanta Cristina, filha do meio do rei Juan Carlos (que abdicou em favor do filho Felipe e também está caído em desgraça), Urdangarin aproveitou sua posição na família real para criar uma rede de negócios ilegais disfarçados em uma fundação. Sentenciado a mais de cinco anos de prisão em 2018, desde o fim do ano passado ele pode sair durante o dia para fazer trabalho voluntário e visitar a família um fim de semana por mês. A meta dos organizadores do programa é ampliá-lo para o maior número de presídios possível e, dessa forma, conseguir reduzir os escândalos de fraude e suborno frequentes no país. A Espanha ocupa a 32ª posição no ranking de percepção da corrupção da Transparência Internacional, bem melhor do que o Brasil (94ª), mas pior do que a Alemanha e a França. “Além de ser democracia recente, com instituições ainda se solidificando, tem uma cultura em que relações pessoais e familiares se misturam facilmente com negócios e política”, diz Manuel Villoria, professor da Universidade Rey Juan Carlos de Madri. Soa familiar?

    Publicado em VEJA de 23 de junho de 2021, edição nº 2743

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