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O machismo e a ‘Bíblia’

O uso de textos sagrados para reforçar comportamentos misóginos deve ser rechaçado a partir de uma leitura que considere o contexto histórico das Escrituras

Por Ed René Kivitz*
Atualizado em 25 mar 2021, 16h19 - Publicado em 29 mar 2019, 07h00

Os equívocos hermenêuticos da visão bíblica e teológica a respeito da mulher deveriam ter ficado na poeira da história, mas ressurgiram com força no Brasil contemporâneo — um reflexo de antigos ensinamentos fora de contexto propagados em igrejas lideradas por homens e da mentalidade de setores evangélicos que ocupam a cada dia mais espaço no noticiário. Intérpretes fundamentalistas defendem a ideia de que os textos bíblicos exigem a subordinação total da mulher ao homem ou, no mínimo, sendo a mulher casada, que ela deva ser submissa ao marido.

As passagens mais utilizadas para sustentar essa desigual relação entre homem e mulher são extraídas dos escritos de São Paulo. Diz, por exemplo, o apóstolo: “Vós, mulheres, sujeitai-vos a vossos maridos, como ao Senhor; porque o marido é a cabeça da mulher, como também Cristo é a cabeça da igreja” (Efésios 5: 22-23), e “a mulher aprenda em silêncio, com toda a sujeição. Não permito que a mulher ensine, nem use de autoridade sobre o marido, mas que esteja em silêncio” (1 Timóteo 2: 11-12). Interpretados fora de seu contexto histórico e tomados como mandamentos literais, tais textos perpetuam a estrutura patriarcal e machista das culturas que foram o berço da tradição bíblica.

Os tempos bíblicos, tanto do Velho quanto do Novo Testamento, eram absolutamente masculinos. Dias difíceis para ser mulher. O mundo helênico onde viveu o apóstolo Paulo não guardava o menor apreço pelo gênero feminino. Aristóteles acreditava que a mulher era “um homem malfeito”. Seria destituída de alma racional e destinada apenas à procriação. Platão e Sócrates citam um dito popular que encorajava os homens a agradecer três bênçãos ao destino: ter nascido humano, e não animal; homem, e não mulher; grego, e não bárbaro. Talvez daí tenha vindo a oração comum aos judeus dos dias de Jesus, que agradeciam a Deus o fato de não terem nascido mulher, cachorro ou samaritano — isto é, miscigenado. Por isso, o bom entendimento da Bíblia nos dias atuais exige que se leve em conta o mundo em que ela foi escrita.

O apóstolo Paulo é, na verdade, um injustiçado nessa matéria. Embora ainda limitado às tradições de seu tempo, ele foi responsável por grandes guinadas na maneira como a mulher passou a ser percebida e tratada. É de sua pena também a expressão que demanda que o marido ame a esposa como Cristo amou a Igreja (Efésios 5: 22-33), conceito subversivo e revolucionário para os ouvintes originais, de um período em que o cuidado com a mulher não se mostrava uma prioridade. Em sua epístola de orientação ao jovem Timóteo, Paulo trata da questão da relação homem-­mulher, discorrendo a respeito dos dois principais argumentos utilizados em sua época para afirmar a primazia do homem: “Primeiro foi formado Adão, e depois Eva. E Adão não foi enganado, mas sim a mulher, que, tendo sido enganada, tornou-se transgressora” (1 Timóteo 2: 13-14). Os dois argumentos fundamentais são o princípio da ordem da criação — o homem foi criado primeiro — e o princípio da ordem do pecado — a mulher foi enganada primeiro.

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Ao voltarmos ao início da Bíblia, encontraremos no Gênesis a ordem da criação acompanhada de versículos que, se lidos com a intenção de exaltar o gênero masculino, reforçam a condição subalterna da mulher. “E disse o Senhor Deus: Não é bom que o homem esteja só; far-lhe-ei uma ajudadora idônea” (Gênesis 2: 18). As traduções restringem a mulher aos papéis de “ajudadora idônea (para o homem)��, “auxiliar que corresponda (ao homem)”, “alguém que ajude (o homem) como se fosse sua outra metade”, “alguém que ajude e complete (o homem)”. O acolhimento literal e isolado desse relato reforça a noção de que a mulher foi criada por causa do homem e está a serviço dele.

“A imagem de Deus não repousa exclusivamente no homem ou na mulher, mas na unidade humana”

Não se deve esquecer, entretanto, aquilo que diz o mesmo Gênesis, em seu primeiro capítulo, versículos 26 e 27: “Então disse Deus: Façamos o homem à nossa imagem, conforme a nossa semelhança. Domine ele sobre os peixes do mar, sobre as aves do céu, sobre os animais grandes de toda a terra e sobre todos os pequenos animais que se movem rente ao chão. Criou Deus o homem à sua imagem, à imagem de Deus o criou; homem e mulher os criou”. Ou seja: homem e mulher foram criados à imagem de Deus — e em pé de igualdade. Na ordem da criação, portanto, a relação homem-mulher articula-se a partir de conceitos como a diversidade e a complementaridade. A imago Dei — ou seja, a imagem de Deus — não repousa exclusivamente no homem ou na mulher, mas na unidade humana; não foi somente o homem criado à imagem e semelhança de Deus, mas toda a raça humana, numa unidade indissociável entre masculino e feminino.

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Desde Eva, a mulher foi estigmatizada como causadora de males. Uma ideia perigosíssima que, perpetuada, faz com que até hoje mulheres sofram abusos e violências físicas. Basta ver os absurdos ditos por Tertuliano (160-220), o primeiro autor cristão, chamado de “Pai da Igreja”: “Você, mulher, é o portão de entrada do inferno; é a primeira desertora da lei divina. Você destruiu, e de modo tão frívolo, a imagem de Deus, que é o homem. Como consequência da sua deserção — isto é, a morte —, até mesmo o Filho de Deus teve de morrer”.

É imprescindível que líderes religiosos revejam a maneira como a mulher é tratada dentro dos templos — até pelo impacto que suas pregações possam ter sobre o destino delas fora das igrejas. A síntese bíblico-teológica da equidade na relação homem-mulher é irrefutável. Apesar de ter sido criado primeiro, o homem perpetua sua existência ao nascer da mulher, e nisso se reafirma a interdependência de ambos — verdade fundamental do Novo Testamento, outro conceito revolucionário de São Paulo (1 Coríntios 11: 11-12). Machismo e misoginia são heranças históricas, sociais e culturais sustentadas por equivocadas tradições da interpretação bíblica e precisam ser urgentemente rechaçadas, inclusive com a autoridade da própria Bíblia. O texto sagrado aponta sempre na direção da superação de todas as injustiças e da afirmação de todos os seres humanos no mesmo patamar de dignidade, como seres criados à imagem e semelhança de Deus.

* Ed René Kivitz é pastor da Igreja Batista de Água Branca, em São Paulo

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Publicado em VEJA de 3 de abril de 2019, edição nº 2628

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