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Moçambique: paz ameaçada por velhos rivais e por radicais islâmicos

Região rica em gás natural é alvo de ataques atribuídos ao grupo fundamentalista Al-Shabaab enquanto Renamo e Frelimo demoram para firmar acordo definitivo

Por Lucas Ferraz, de Maputo
Atualizado em 29 jul 2018, 09h00 - Publicado em 29 jul 2018, 09h00

Em Maluana, uma pequena vila no distrito de Manhiça e a cerca de 70 quilômetros de Maputo, Baioneta surge do fundo de sua roça com um sorriso amigável. Conhecido pelo apelido do avô – o Baioneta original ganhou a alcunha ao participar, no início do século 20, da guerra que pôs fim ao Império de Gaza, no território que hoje é Moçambique –, João Ezequiel seguiria os seus passos transformando-se em um temido guerrilheiro, décadas depois.

Ele seria um dos rebeldes da Renamo (Resistência Nacional Moçambicana), grupo que se insurgiu há mais de quarenta anos contra a Frelimo (Frente de Libertação de Moçambique), partido que governa o país africano desde a sua independência, em 1975. As organizações tornaram-se as protagonistas da guerra civil iniciada dois anos depois e que deixou um saldo de um milhão de mortos.

Recrutado em 1979, João Ezequiel, hoje com 55 anos, teve participação ativa no conflito até o armistício de 1992. Formado militarmente na África do Sul, ele fez um pouco de tudo: participou de emboscadas, explodiu postos da polícia e do governo do estado, controlou barreiras em estradas, comandou tropas e foi um dos seguranças de Afonso Dhlakama, fundador da Renamo e, desde o final da década de 1970, principal líder da oposição em Moçambique.

“Matei muitos, só não sei quantos. A guerra é dura e suja, mata-se muito. Perdi muitos amigos”, disse Baioneta.

O ex-combatente, como quase toda a população, inquietou-se no início de maio com o anúncio da morte de Dhlakama. Ele é considerado um dos pais da democracia moçambicana, construída a partir de 1994, quando o país realizou as primeiras eleições após abandonar o regime comunista.

Aos 65 anos, Dhlakama vivia na Serra de Gorongosa, no centro do país, ainda insurgente contra o governo. Ele morreu em decorrência de complicações do diabetes no momento em que discutia diretamente com o presidente do país, Filipe Nyusi, a formalização de um novo acordo de paz – o quinto nos últimos 25 anos. Todos acabaram descumpridos por um dos lados do conflito.

O desaparecimento do líder rebelde provocou inquietações sobre o possível recrudescimento da guerra civil – possibilidade de toda não descartada. O substituto interino de Dhlakama no comando da Renamo, Ossufo Momade, transferiu-se em junho para as mesmas montanhas de Gorongosa, bastião do grupo, alegando sentir-se mais seguro lá do que na cidade.

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Guerra e paz

Integrante da Frelimo durante a guerra de libertação contra o Exército português, Dhlakama deixou o grupo após a independência e criou o seu próprio, rebatizado de Renamo, que iria se insurgir contra o regime comunista implantado em Moçambique. Para isso contou com o apoio de países vizinhos, como a África do Sul do apartheid e até os Estados Unidos. O anticomunismo – ou a democratização do país, como começaram a dizer depois – foi o motivo do início da guerra civil, que oficialmente só iria terminar em 1992 com a assinatura de um acordo de paz – o segundo dos cinco – em Roma.

Dhlakama disputou as cinco eleições presidenciais realizadas entre 1994 e 2014 e saiu derrotado em todas elas, o que gerou suspeitas de fraude eleitoral. Após a derrota no último pleito, ele voltou às armas e se refugiou na região de Gorongosa, onde vivia sob restrita proteção militar, dormindo em acampamentos nas montanhas e comunicando-se quase sempre por meio de rádios. Entre 2015 e 2016, foram registrados novos ataques no país, sobretudo na região centro-norte, resultando em mais mortes de civis.

Apesar de manter ainda hoje um contingente armado estimado em mais de mil homens, a Renamo tem representação no Parlamento desde 1994. O partido elegeu, há quatro anos, 89 dos 250 deputados da Assembleia da República.

São duas as principais reinvidicações do grupo, previstas no acordo de 1992 e ainda hoje não cumpridas pelo governo. A primeira, a descentralização política, com a possibilidade de as províncias elegerem os seus próprios governadores, atualmente indicados pelo governo central. A outra é a incorporação dos homens da Renamo às Forças Armadas, à polícia e ao serviço secreto.

“Desde 1992, é a mesma história. Fica difícil acreditar na palavra da Frelimo. Mas temos de agir pela boa fé e romper esse círculo vicioso que não ajuda o país. Já passou da hora de um entendimento”, disse Ivone Soares, sobrinha de Afonso Dhlakama e uma das deputadas da Renamo na Assembleia da República.

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Aos 39 anos, nascida em família de guerrilheiros (sua mãe aderiu à guerrilha aos 12 anos), Ivone é citada como uma possível sucessora do tio no comando do partido. Embora rejeite a hipótese, é vista como candidata à Presidência no ano que vem. Segundo a deputada, o partido tem outros nomes mais preparados para tal posto.

A morte de Dhlakama também pode comprometer os planos do atual presidente moçambicano, Filipe Nyusi, que vê no acordo de paz uma oportunidade de deixar uma marca no seu primeiro mandato. Nyusi provavelmente será candidato à reeleição no ano que vem e, até o momento, não apresentou nada de relevante para sensibilizar o eleitorado.

Além de uma inflação galopante e uma alta taxa de desemprego, Nyusi enfrenta a mácula do escândalo das dívidas ocultas. Entre 2013 e 2014, autoridades do país tomaram empréstimos de 1,8 milhão de euros e não os registraram nas contas públicas do Estado. O caso, ainda em investigação, não apontou nenhum culpado até o momento. A descoberta, porém, causou alvoroço sobretudo entre os parceiros internacionais do país, que respondem por cerca de um quarto do orçamento do governo moçambicano.

A negociação direta entre Nyusi e Dhlakama também gerou críticas de alas da Frelimo resistentes ao acordo. Áudios com declarações contra o presidente circularam nas redes sociais após ele comparecer ao velório do líder da Renamo, dando à cerimônia um tratamento semelhante ao de um chefe de Estado. Muitos no partido do governo sempre defenderam uma solução angolana para o caso, em uma referência ao líder rebelde de Angola, Jonas Savimbi, assassinado pelas Forças Armadas daquele país em 2002.

“Já tínhamos ultrapassado as diferenças e definido as reais prioridades dos militares da Renamo, porque tínhamos a consciência de que se tratava de concluir um processo e não iniciar um novo”, declarou Nyusi dias depois da morte de Dhlakama.

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O presidente, que já se referiu ao rebelde morto como um “irmão, não um inimigo”, ressaltou que os processos de descentralização em curso – um projeto de lei tramita atualmente no Legislativo – vão fortalecer “a paz e a união entre os moçambicanos”.

Neste mês, após um encontro no interior do país, Nyusi e Momade, o atual líder da Renamo, anunciaram um consenso para a integração dos quadros militares. Eles disseram que trabalham para o acordo ser anunciado ainda antes das eleições municipais de outubro.

Instabilidade

Como se não bastassem as tensões de uma guerra civil ainda não resolvida, um novo ator – aparentemente sem ligação com as partes envolvidas no conflito de mais de 40 anos – ganhou protagonismo no último mês ao detonar dezenas de atentados na província de Cabo Delgado, próximo da fronteira com a Tanzânia, no norte, uma das áreas mais pobres de Moçambique.

Os ataques terroristas foram atribuídos a um grupo extremista islâmico conhecido como Al-Shabaab, uma versão local do Boko Haram, que realizou as primeiras ações em outubro do ano passado. Pelo menos 32 pessoas morreram – a maioria, decapitada – e centenas de casas foram destruídas.

Não está claro se o grupo faz parte de alguma rede do terrorismo islâmico internacional ou se atua de acordo com a dinâmica local. O fato é que, agora, a província de Cabo Delgado receberá investimentos e empresas estrangeiras para o desenvolvimento da indústria do gás natural, uma das grandes apostas da frágil economia moçambicana. Em resposta, forças policiais mataram nove insurgentes no início de julho. O medo e a falta de informação predominam.

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A região centro-norte de Moçambique, rica em recursos mineiras e a menos desenvolvida do país, é também onde a Renamo sempre foi mais bem votada nas eleições presidenciais e também nas municipais. Ali está presente, entre outras empresas, a brasileira Vale. Na geografia da guerra civil, é onde o grupo rebelde atuava com mais desenvoltura, enquanto a Frelimo concentrava sua força no Sul, no entorno da capital Maputo.

“Ou o país se junta contra essa cultura de guerra e violência ou sabe-se lá aonde vamos parar”, diz José Manteigas, um homem miúdo e magro, porta-voz da Renamo e deputado há cinco mandatos.

Ex-seminarista que por pouco não virou padre, Manteigas ressalta que a questão militar ainda é um tema a ser resolvido, assim como as assimetrias regionais evidenciadas na lógica da guerra civil e nos recentes ataques na região norte.

“Além de não dar espaço aos nossos homens nas forças militares, o governo usa a estrutura do Estado para prender, hostilizar e assassinar os membros da Renamo. Todos os militares do nosso partido estão em cargos subalternos”, reclama.

Sem Dhlakama, o desafio da Renamo será manter a unidade, colocada à prova diante das diferenças entre as alas política – representada no Parlamento por gerações mais novas, como Ivone Soares – e militar, o caso do líder interino, com status de general e já refugiado no mato.

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“Não há divisão entre a ala política e a militar. A Renamo é um corpo só”, garante Manteigas. Ele, porém, reconhece a falta que fará Dhlakama: “Ele foi o único que conseguia tirar as calças da Frelimo”.

Carismático e popular, Dhlakama era considerado por muitos moçambicanos um ser imbatível, com poderes mágicos que lhe permitiam desaparecer dos ataques das forças do governo, como em 2015, quando saíra incólume de uma emboscada.

“Ele era um homem simples, que gostava de conversar com o povo, dançar e tomar uma cervejinha”, relembra João Ezequiel, o Baioneta, que até poucos anos atrás ainda fazia a segurança do líder da Renamo toda vez que ele passava por Maputo.

“Quando o pessoal resolveu retornar para o mato, recentemente, eu não quis mais. Não queria mais guerra. Apesar dos acordos sempre terem sido descumpridos, agora quero paz. Só isso”, disse Baioneta.

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