Líbano: um país em frangalhos depois da explosão
Os libaneses vão às ruas exigir a deposição de todo o governo, acusado de incompetência e corrupção generalizada
A devastadora detonação de 2 750 toneladas de nitrato de amônio, substância altamente explosiva que se deteriorava há anos em um depósito malcuidado no Porto de Beirute, produziu ondas de som e calor que puseram abaixo não só boa parte da capital do Líbano, como também qualquer resquício de respeito pelas autoridades. Sem emprego, sem perspectivas, até sem comida, os libaneses ocuparam a terra arrasada pela explosão para desabafar o ressentimento para com os políticos em geral, expresso na enorme faixa fincada sobre as ruínas da zona portuária com a frase “o governo fez isso” — referência ao fato de que pelo menos dois alertas sobre o perigo adormecido foram solenemente ignorados. Encostado na parede, o primeiro-ministro Hassan Diab renunciou. “Descobri que o sistema corrupto é maior do que o Estado, que o Estado está amarrado a esse sistema e que não há como nos livrarmos dele”, bradou Diab em sua despedida, como se não fosse ele mesmo parte do conjunto até um minuto antes.
Enquanto o presidente Michel Aoun não aponta um novo primeiro-ministro, o que pode levar meses, Diab permanece no cargo, com o poder esvaziado, deixando no ar negociações cruciais, entre elas a ajuda internacional para começar a mover os escombros de uma tragédia que deixou cerca de 200 mortos, 6 000 feridos, 300 000 desabrigados e prejuízos calculados em 15 bilhões de dólares. A renúncia não apaziguou os manifestantes, que exigem a saída também do presidente e novas eleições imediatas. Para os libaneses, a bomba que explodiu em Beirute tem seu rastilho no colapso político e econômico em que o país está afundado há meses.
Políticas equivocadas do Banco Central resultaram em uma dívida pública de 150% do PIB, que faz do Líbano o terceiro país mais endividado do planeta. Nos últimos oito meses, o governo restringiu os saques nos bancos, a libra virou pó, a inflação chegou a 50% e um empréstimo de 10 bilhões de dólares do Fundo Monetário Internacional empacou. Prevê-se que metade dos 6 milhões de libaneses cruzará a linha da pobreza este ano. Até a pandemia, que estava controlada em 7 000 casos e noventa mortes, agora registra recordes diários de contágio e óbitos. “A população está desesperada e o país, próximo da debacle total”, avalia Martin Beck, professor de política do Oriente Médio da Universidade do Sul da Dinamarca.
Entender o emaranhado libanês não é tarefa para amadores. Para satisfazer o balaio étnico-religioso que compõe o país, o governo é repartido entre dezoito grupos sectários. A fragmentação abriu espaço para que os vizinhos mais fortes se tornassem determinantes nos destinos da nação e que a meia dúzia de famílias que se alternam na cúpula política formulasse um azeitado esquema de clientelismo e propinas. No momento, a força está com o Irã, financiador do Hezbollah, grupo incluído na lista de organizações terroristas no Ocidente.
O Líbano moderno permaneceu, de 1920 a 1943, sob tutela francesa — daí o presidente Emmanuel Macron ter sido o primeiro a visitar a área destruída pela explosão, antes mesmo dos governantes locais. O Brasil, que enviou o ex-presidente Michel Temer em missão diplomática, tem a maior comunidade libanesa fora do Líbano, cerca de 5 milhões de descendentes de uma onda migratória iniciada nos anos 1880. “Dom Pedro II fez uma visita ao Oriente e a imprensa exaltou as riquezas minerais e agrícolas do Brasil”, explica o paranaense Roberto Khatlab, diretor do Centro de Estudos da América Latina da Universidade Saint-Esprit, no Líbano. Apesar da distância, os vínculos entre as famílias daqui e de lá são fortes e os contatos, frequentes — mais ainda agora. “Tive um primo e um tio feridos na explosão. Nós nos falamos o tempo todo”, diz a estudante Badra El Cheikh, 24 anos, neta de libaneses que mora em Niterói, na região metropolitana do Rio de Janeiro. “Só espero que o Líbano não continue afundando.” Com tanta confusão, hoje é difícil fazer algum prognóstico.
Com reportagem de Caio Saad
Publicado em VEJA de 19 de agosto de 2020, edição nº 2700