O estado do Arizona, no Sudoeste americano, raramente ocupa o centro das atenções. Nos últimos dias, no entanto, teve sua obscuridade sacudida pelo anúncio de que a empresa taiwanesa TSMC, a maior fabricante de semicondutores do mundo, não só abriu uma fábrica lá como vai triplicar seu investimento no projeto, de 12 bilhões para 40 bilhões de dólares ao longo dos próximos anos. Não se trata apenas de um supernegócio — a planta está no centro tanto da batalha econômica e política que os Estados Unidos travam com a China como de uma reforma profunda no modelo industrial americano, que se volta para dentro e tira da gaveta a empoeirada bandeira do Made in America.
A campanha para produzir nos Estados Unidos os produtos que os Estados Unidos consomem — e se livrar da dependência da China — foi lançada no governo de Donald Trump, sob o lema Buy American, Hire American (compre produtos americanos e dê emprego a americanos), mas nunca saiu do papel porque o ex-presidente preferiu embarcar em uma birrenta guerra de tarifas que não levou a nada. Biden abraçou o Buy American logo no início do governo e, mais recentemente, pisou no acelerador do rebatizado movimento Made in America com dois pacotes mastodônticos — e claramente protecionistas: a Lei dos Chips, que reserva 52 bilhões de dólares em incentivos para empresas construírem fábricas no país, e a Lei de Redução da Inflação, com 370 bilhões de dólares em subsídios direcionados à produção de energia limpa e créditos fiscais para veículos elétricos feitos no país. Bem recebida internamente, a dinheirama arrepiou parceiros comerciais de longa data, beneficiários da economia globalizada que temem ser pegos no fogo cruzado entre Estados Unidos e China.
Os chips, do tamanho de uma unha, estão no centro do furacão porque hoje em dia tudo depende deles, de smartphones a sistemas avançados de armas, passando por carros, computadores, eletrodomésticos, videogames e demais componentes da vida moderna. Na economia globalizada, a pesquisa e desenvolvimento de chips, bem como os equipamentos para produzi-los, são setores dominados por Estados Unidos, Japão e Holanda. A fabricação em si se concentra no Oriente e o consumo mais voraz é, disparado, o da China, que abocanha boa parte da produção interna e é também o maior importador. No esforço para domar o gigante oriental, os Estados Unidos deixaram de vender a Pequim tecnologia de ponta e equipamentos, pressionam os demais países a fazer o mesmo e tentam cortar o fluxo de chips prontos.
Ciente de sua vulnerabilidade, o governo de Pequim estabeleceu um plano ambicioso para o setor, prevendo autossuficiência em manufatura de alta tecnologia até 2025, liderança em inteligência artificial até 2030 e domínio global da indústria até 2035. Reagindo à Lei dos Chips americana, que pode atrasar o projeto em dez anos, a China se prepara para anunciar um pacote próprio de 143 bilhões de dólares em subsídios para fábricas de semicondutores. Enquanto isso, a Casa Branca se dedica a montar uma cadeia de suprimentos robusta e independente dos chineses, o que requer estreita cooperação com aliados.
A campanha de aliciamento, no entanto, vem sendo prejudicada pela intenção do governo Biden de ressuscitar a manufatura local, na crença de que a competição chinesa enfraqueceu a segurança do país e prejudicou a economia. “As novas medidas protecionistas favorecem empresas que investem nos Estados Unidos, em vez de Europa e demais parceiros próximos”, diz Richard Newfarmer, ex-representante do Banco Mundial na Organização Mundial do Comércio. Em visita a Washington no início de dezembro, o presidente francês Emmanuel Macron reclamou que os subsídios americanos “não foram devidamente coordenados com as economias europeias”.
Com a tática do Made in America, o governo Biden subverte, sem alarde, o Acordo Geral sobre Tarifas e Comércio, que proíbe restrições às trocas internacionais, exceto sob condições específicas — e a justificativa americana de proteção da segurança nacional não foi aceita. “Estamos vendo uma erosão das normas internacionais e da ordem multipolar”, alerta Edward Alden, economista do centro de pesquisas Council on Foreign Relations. “Os países serão forçados a escolher com quem fazer negócios, abrindo caminho para uma nova era de blocos, no estilo Guerra Fria.” O embate dos gigantes está só começando e dele se salvará quem puder.
Publicado em VEJA de 21 de dezembro de 2022, edição nº 2820