Aquela quinta-feira parecia um dia como qualquer outro. Sou entregador e estava na moto, no centro de Dublin, na Irlanda, fazendo meu trabalho. Aí avistei uma confusão na rua. Ia passar direto, num impulso de seguir a vida, mas estranhei ao ver de relance uma mulher e crianças na briga. Rapidamente, freei, larguei a moto e corri para o local. O tumulto era na frente de uma escola. Me aproximei para entender o que se passava e percebi que lá estava um homem com uma faca diante de alunos de 4, 5 anos. De repente, em segundos, assisti ao horror. O sujeito enfiou a faca no peito de uma menininha. Tirei meu capacete e parti para cima do criminoso. Desferi contra ele um primeiro golpe com toda a força, o que o fez cair no chão, inconsciente, e ainda dei mais alguns golpes. A partir daí, só tenho flashes de memória, de tão dolorosa e traumática a cena.
Foi tão intenso que fiquei desorientado, querendo me afastar dali. Enquanto tentava me recompor, a polícia e a ambulância chegaram. A garota passou então a receber massagem cardíaca de um médico. Eu tremia, em estado de choque. Sou pai de dois filhos e me coloquei no lugar dos outros, uma multidão desesperada atrás de informações sobre suas crianças. O ataque, só me dei conta depois, também feriu uma professora, perfurada pela faca ao proteger os alunos. Me encaminharam à delegacia, onde precisei tomar calmante antes de prestar depoimento. Nas horas que se sucederam, começou a circular pela cidade que o homem responsável pela agressão, agora preso, seria um argelino com cidadania irlandesa. As ruas logo se encheram de manifestantes, num quebra-quebra que acabou virando ato político contra a imigração. Para mim, não importa a origem do assassino. A questão é a inexplicável crueldade com que agiu, uma selvageria inaceitável.
Nas primeiras noites, não consegui fechar os olhos. Mas tinha de sair para fazer entregas, de onde tiro o sustento para minha família, que continua no Brasil. Decidi me mudar no ano passado, depois de um difícil período financeiro. O bar que eu tinha em Niterói, no Rio, pegou fogo, e achava que a Europa seria um caminho. Já tinha vivido na Inglaterra, aí escolhi a Irlanda, onde trabalho dez horas por dia, fazendo bom dinheiro. Após o atentado, formou-se uma corrente de solidariedade. Como tinha ficado sem meu capacete, me emprestaram um. E a história viralizou nas redes. Repórteres europeus me procuraram e passei a receber mensagens de apoio. Meu celular não parava. Curioso é que o vento daquela leva de protestos anti-imigração, que se iniciou contra o homem que feriu a menininha, mudou de direção. Virei uma espécie de símbolo pró-migração — um brasileiro em busca de vida melhor que se arriscou para salvar pessoas. Até o primeiro-ministro Leo Varadkar me concedeu uma medalha pelo ato de bravura.
Estes tempos conectados produzem histórias como esta, que surpreendem por atravessar fronteiras. Um irlandês que eu não conhecia fez uma vaquinha on-line para me ajudar, um gesto de agradecimento da população, e já arrecadou inacreditáveis 370 000 euros (cerca de 2 milhões de reais). Certamente vai mudar minha vida, mas ela foi transformada mesmo pela violência que presenciei e felizmente consegui frear. Fui visitar a menina ferida no hospital, onde permanece em estado crítico, e conversei com sua mãe. Foi muito especial. Ofereci auxílio financeiro para cobrir os altos gastos que ela está tendo. Hoje me reconhecem na rua, me dão abraços e dizem palavras bonitas. Em um mundo tão dividido e polarizado, com tantos atos de ódio injustificados, como esse ao qual assisti, é muito bom ver como as pessoas podem se unir contra a insensatez.
Publicado em VEJA de 8 de dezembro de 2023, edição nº 2871