Minha mãe, que me criou sozinha, era nutricionista e tinha um emprego bom em um hospital no Rio de Janeiro. Mas, como muitos brasileiros, sonhava com um futuro melhor para mim e para meu irmão. Então resolveu vender tudo e um dia chegou em casa, com passaportes e uma mala para cada um, dizendo para colocarmos dentro dela as nossas coisas mais importantes. Acho que com 7, 8 anos, tudo é importante e lembro que a gente não sabia o que escolher. Eu resolvi me apegar a um diário e um ursinho. Como você coloca a vida inteira em uma mala? Em 1990, chegamos a Nova York para ficar, sem documentação para isso. Minha mãe passou a trabalhar como faxineira, limpando casas e hotéis. Na Tijuca, Zona Norte do Rio, onde morávamos, tínhamos móveis próprios. No Queens, em Nova York, mobiliamos o apartamento com sofás e mesas que achamos largados na calçada. Todos os dias, quando ia para a escola, minha mãe me dava um beijo, dizia que me amava e falava: “Seja invisível”. Passei boa parte da vida com medo, principalmente da deportação. Se não estávamos esperando alguém e por acaso batiam na nossa porta, entrávamos em pânico.
Ao longo da infância e da adolescência nos EUA, eu sempre olhava em volta, à procura de alguma mulher que tivesse passado por uma situação igual à minha e se tornado alguém importante, CEO de uma empresa. Precisava de um modelo desses, precisava de uma esperança para compensar o medo constante. Mas nunca achei essa pessoa. Quando enfim me formei, também em nutrição, consegui meu visto de residência e, depois, a cidadania americana. Alcancei uma posição em que posso contar o que passei e faço questão de espalhar minha história.
Hoje sou casada com o vice-governador da Pensilvânia e, por isso, um segurança sempre me acompanha. Em um domingo nublado, fiz diferente: peguei o carro e resolvi ir sozinha ao mercado. Na fila, esperando minha vez de pagar, uma senhora se dirigiu a mim e, de repente, começou a me atacar verbalmente. Me chamou de ladra, disse que eu não merecia viver no país. Ainda esbravejou uma palavra que não gosto de repetir (nigger, negro em português). Tenho o maior respeito e orgulho pela luta dos negros, mas nem me considero negra. Ela usou o termo como xingamento, por eu ser diferente, uma imigrante. Em choque, paguei rapidamente e corri para o estacionamento. No meu jipe, já saindo da vaga, a senhora parou ao lado do carro e disse outra vez tudo o que havia dito dentro do mercado, em tom muito mais virulento. Foi quando eu peguei o celular e consegui filmar uma parte. Ela me insultou na minha cara. Nunca tinha acontecido isso.
Pelo computador, é comum. Meu marido foi prefeito quatro vezes. O primeiro casamento entre pessoas do mesmo sexo na Pensilvânia foi na nossa casa (que não é a oficial do vice-governador), fizemos da nossa piscina um espaço público, trabalho com ONGs. Por nossas atitudes, e por ter nascido em outro país, recebo ofensas e ameaças em cartas, e-mails e comentários nas redes sociais, diariamente. Um homem escreveu que queria me colocar em uma caixa de madeira e devolver para o Brasil. Mando tudo para a polícia. Sei que não é certo me acostumar com isso, mas depois de muitos anos de choro, de tristeza, consigo aceitar que não é pessoal. Eles temem o diferente. Tentaram transformar a agressão daquela mulher em um caso político. Não sei se vale a pena. Mas, com certeza, ter líderes que também agridem, que falam coisas horríveis, acaba influenciando certos grupos. Ela me acha inferior porque não nasci neste país. Quando eu era criança, não podia fazer nada. Hoje eu tenho voz e tenho orgulho da minha história. Aquela pessoa não vai me derrubar.
Gisele Fetterman em depoimento dado a Caio Saad
Publicado em VEJA de 4 de novembro de 2020, edição nº 2711