O último compromisso público do jornalista saudita Jamal Khashoggi, no dia 29 de setembro, foi participar de um debate no Middle East Monitor (Memo), um site jornalístico sediado em Londres. Após o programa em que reiterou suas críticas ao governo da Arábia Saudita, Kashoggi saiu para jantar com seu amigo caribenho Daud Abdullah, diretor do Memo e ativista pró-palestina, a quem contou que viajaria para a Turquia. Três dias depois, o jornalista entrou no consulado da Arábia Saudita em Istambul e nunca mais foi visto — ao que tudo indica, acabou assassinado e esquartejado no local. Nessa entrevista exclusiva a VEJA, Abdullah, de passagem pelo Brasil para participar de um encontro na Universidade de São Paulo sobre os 25 anos dos acordos de paz de Oslo, conta como foram os últimos momentos ao lado do amigo e analisa as consequências de sua morte.
Como foi o seu último encontro com Jamal Khashoggi? No jantar, ele mostrou mensagens no Twitter contra ele. Disse que o ”exército de ciberativistas” do rei Salman al Saud estava criticando suas falas no debate. Perguntei se o governo pensava em cassar sua cidadania e ele respondeu: “Não acho que iriam tão longe”. Ter decidido exilar-se voluntariamente, há um ano e meio, era uma indicação de que ele não se sentia confortável. Estava preocupado, mas não paranoico. Fomos para o restaurante e voltamos para o hotel a pé, sem pensar em ameaças. Jamal tinha 60 anos, divorciou-se da primeira mulher, precisou sair de seu país e deixar a família para trás. Tinha esperança de que o segundo casamento seria o começo de uma vida nova.
Na sua opinião, ele foi ingênuo ao entrar no consulado? Jornalistas correm riscos. Mas ele deixou o celular para a noiva, o que mostra que não estava 100% certo de que iria sair. Ainda avisou: “Se eu não voltar em duas horas, dê o alarme”.
A versão oficial do governo é de que Khashoggi morreu em uma briga com indivíduos que agiram por conta própria, sem envolvimento do príncipe Mohammed Bin Salman, filho do rei e homem forte do trono. Onde ela é falha? Em tudo. Os agentes tinham um plano para executá-lo. Inclusive levaram um médico especialista em autópsias, com seu equipamento? Para quê? Para desmembrar seu corpo. O plano foi executado de maneira tosca. Os quinze homens eram todos ligados à equipe de segurança do príncipe. O chefe do grupo, Maher Abdulaziz Mutreb — que por sinal foi amigo de Jamal quando os dois moraram em Londres, nos anos 1990 —, telefonou para a secretária do príncipe de dentro do consulado.
Por que o senhor acha que o assassinato aconteceu em um consulado na Turquia? Foi um ato de provocação, do tipo: “Podemos fazer isso e sair ilesos”. Só que não deu certo e os turcos os pegaram. Também deve ter achado que, como a Turquia vem enfrentando grande instabilidade, seria fácil responsabilizar outros pela morte de Jamal. Chegaram inclusive a dizer que ele deixou o consulado e foi sequestrado e morto pelos turcos. Veja o nível de cinismo.
O mundo ocidental vê a Arábia Saudita como uma ditadura alinhada com seus interesses. A morte de Khashoggi pode mudar isso? Acredito que as relações estratégicas serão preservadas, principalmente diante das declarações de Donald Trump, dos Estados Unidos, de confiança na investigação oficial. Mas pode haver algum movimento na direção de se afastar Mohamed Bin Salman, um irresponsável muito perigoso para a estabilidade de uma região tão volátil. Ele ocupou e está destruindo o Iêmen, um desastre humanitário denunciado pela ONU. Bloqueou o Qatar, que é um aliado dos Estados Unidos e de outros países ocidentais. Minha expectativa é que vão tentar diminuir o poder de Mohamed Bin Salman e colocar no comando alguém mais maduro e mais seguro. Os americanos não precisam de tanques ou aviões de guerra para isso. Basta uma ação política eficiente. Se acontecer, algo bom sairá desta crise e a morte de Jamal não terá sido em vão.