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Ego se tornou mais importante do que a natureza, diz Satish Kumar a VEJA

Ativista indiano fala sobre antagonismos do cenário político internacional, crise climática e expectativas com Brasil

Por Paula Freitas Atualizado em 8 Maio 2024, 12h29 - Publicado em 11 mar 2024, 16h47
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  • O ambientalista indiano Satish Kumar, 87 anos, tem uma história de vida que foge, e muito, do ordinário. Aos nove anos, tornou-se um monge jainista, função que exerceu até os 18, quando aderiu aos ensinamentos de Mahatma Gandhi e entrou na luta pela reforma agrária na Índia. Em meio à Guerra Fria, em 1962, andou por 15 países, em três continentes, em uma marcha contra a ameaça nuclear. Sem levar dinheiro, andou pelas montanhas do Afeganistão, pelo deserto do Irã e enfrentou o frio congelante da Rússia – quando não podia cruzar a pé, pegava carona em barcos. A aventura durou dois anos e meio.

    O diretor brasileiro Julio Hey e o ambientalista indiano Satish Kumar.
    O diretor brasileiro Julio Hey e o ambientalista indiano Satish Kumar. (Café Royal/Divulgação)

    Em abril, ele aterrissará em São Paulo para assistir ao primeiro corte do documentário “Amor Radical”, um filme Original Aquarius, realizado pelo diretor brasileiro Julio Hey, sócio da Café Royal. Filmado entre o Reino Unido e a Índia, o longa trata sobre a impressionante vida do ambientalista. A vinda também está relacionada à Escola Schumacher Brasil, fundada em 2014. Trata-se de uma associação educacional sem fins lucrativos que tem como objetivo instigar, através de cursos, imersões e projetos com organizações, a formação de uma visão de mundo não violenta e ecológica.

    Em primeira mão a VEJA, Hey adianta que o filme conta com a participação especial de Vandana Shiva, ecofeminista indiana, física e diretora da Fundação de Pesquisas em Ciência, Tecnologia e Ecologia, em Nova Délhi. A dupla se encontra na fazenda Navdanya, centro de estudos e banco de sementes fundado com ajuda de Kumar.

    Por trás das câmeras: Julio Hey com Satish.
    Por trás das câmeras: Julio Hey com Satish. (Café Royal/Divulgação)

    A VEJA, Kumar fala sobre os antagonismos do cenário político internacional, variando entre indignação e brincadeiras leves a depender do assunto. A respeito da marca de 30 mil mortos na Faixa de Gaza, reflexo das implacáveis operações militares israelenses, franze o cenho e condena a espiral de violência. Sobre a andança pacifista, a epopeia de sua vida, relembra, sem tirar o sorriso do rosto, uma curiosa história sobre como uma xícara de chá pode ser capaz de fazer líderes mundiais abaixarem a guarda e conversarem sobre o futuro da humanidade – distante da devastação das bombas nucleares e do ego moderno, mas próximo da paz.

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    Na Guerra Fria, você andou por três continentes num protesto antinuclear. Como vê as recentes ameaças do russo Vladimir Putin sobre suas armas “capazes de destruir a civilização”, caso tropas da Otan entrem na Ucrânia? 

    Acho a guerra na Ucrânia totalmente desnecessária. Tanto Putin quanto países ocidentais são responsáveis por esse conflito. Eu acho que Putin, Zelensky, Biden, todos esses líderes, deveriam sentar todos juntos e tomar uma xícara de chá. Quando eu estava caminhando pelo mundo, em 1962, estava na Geórgia, próximo ao Mar Negro. Conheci duas mulheres em uma fábrica de chá e me convidaram para tomar uma xícara com elas. Um delas foi a um depósito e voltou com quatro pacotes de chá e disse: “Eu quero que você seja meu embaixador, meu mensageiro, e entregue um pacote para o líder do Kremlin, do Palácio do Eliseu, da Downing Street e da Casa Branca. E, por favor, mande o meu recado: se você tiver algum conflito, situação de guerra ou ameaça nuclear, tire um minuto e tomem um chá fresco juntos e conversem sobre o problema”. A chave para a morada da paz é o amor e a negociação, não bombas.

    Durante a marcha pela paz, você não carregou recursos e confiou na compaixão de outras pessoas para ter abrigo e comida. Como foi essa experiência?

    Eu e meu amigo decidimos que não levaríamos dinheiro porque as guerras começam com o medo. A paz começa na confiança. Por dois anos e meio, andamos 13 mil quilômetros sem recursos. Para todos os lugares que íamos, entregamos um folheto, explicamos que estávamos marchando pela paz e falamos que se alguém quisesse nos receber por uma noite, ficaríamos muito gratos. E quando as pessoas conversavam conosco, ficavam curiosas e faziam várias perguntas. Então, muitas nos ofereceram comida, hospedagem para a noite, roupas, sapatos, chapéus, tudo o que precisássemos em prol da paz. Pessoas são pessoas em todos os lugares. Eu amo cada um deles, amo a humanidade.

    Especialistas são enfáticos de que nas guerras há uma “vítima silenciosa”: a natureza. Os efeitos nocivos das guerras sobre habitats, ecossistemas e o meio ambiente são, muitas vezes, jogados para escanteio? 

    É por causa do ego e do orgulho. Os egos nacionais e coletivos tornam-se mais importantes do que o meio ambiente. Então, estão preparados para destruir o nosso habitat natural, para poluir o meio ambiente, a lançar emissões de carbono e gases de efeito estufa, a matar seres humanos e destruir edifícios, a colocar bombas no solo e contaminá-lo só por causa do orgulho, em nome da nação, da bandeira, da religião, o que quer que seja. Nós somos seres humanos. A palavra “humanos” e “humanidade” vêm da mesma raiz etimológica. Se não há humanidade, então, não somos humanos. A humildade é um princípio primordial. Mas, no momento, os Estados Unidos, Rússia, Israel e Hamas sofrem pela arrogância.

    Como ferrenho defensor da não violência, acredita em uma possibilidade de paz no conflito entre Israel e Hamas? São mais de 30 mil palestinos mortos desde outubro, assim como 1.100 israelenses. 

    O caminho para o fim do conflito é parar de culpar uns aos outros. Israel culpa Hamas, Hamas culpa Israel, falando: Israel tem ocupado nossa terra há quase 80 anos. Israel diz que Hamas começou o terrorismo. Culpar uns aos outros não é a solução. Eles precisam dizer: “o passado é passado”. Setenta ou oitenta anos de ocupação são passado; o que o Hamas fez, também; o que Israel fez, ao matar 30 mil pessoas, é passado. E olhe: Hamas matou mais de mil [israelenses]; Israel matou mais de 30 mil pessoas e 70 mil estão feridas – tantas mulheres e crianças mortas; edifícios, solo e meio ambiente [devastados]. Esse não é o caminho, isso não é política e diplomacia, não é sanidade e humanidade. É total e clara estupidez. Então, digo: esqueça o passado. Não há como desfazê-lo. Vamos construir um futuro.

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    O Brasil é sede do G20 neste ano e sediará a COP30 no ano que vem. Quais são suas expectativas para esses encontros? 

    Minha esperança é que Lula seja um ótimo presidente e, para isso, precisa deixar um bonito legado para o futuro. Então, eu diria ao Lula: seja um estadista, não um político. E, para isso, você precisa olhar para todos os brasileiros, quem quer que seja, onde quer que estejam. Deixe para lá os aspectos políticos e econômicos que os separam. Todos são brasileiros e todos deveriam ser felizes. Mas os mais pobres, as crianças, a floresta e o rio devem ser levados em consideração primeiro. Se fizer isso, será um bom presidente. As conferências internacionais vêm apenas em segundo lugar. O Brasil é um país grande, e não deveria ser pobre. Por que ainda existem crianças famintas? Isso deveria ser uma vergonha. Exporta comida para a China e Estados Unidos, mas não tem comida para a própria população? É uma contradição, uma inconsistência.

    Você afirma que, hoje, existe uma “separação imaginária entre os seres humanos e a natureza”. O que seria essa divisão?

    Nós somos natureza. O significado etimológico de natureza significa nascimento. Então, todo ser que nasce é natureza. Todos nós somos feitos de terra, ar, fogo e água – árvores, montanhas, animais e seres humanos. Os humanos e a natureza não estão separados. E nós não estamos acima do meio ambiente, não somos superiores, mas parte integral. O que fazemos para a natureza, fazemos para nós. Se poluirmos, estamos nos poluindo – se contaminamos a água, temos de bebê-la; se poluirmos o ar, de respirá-lo.

    A natureza não é uma máquina, é uma comunidade de seres vivos. Não é uma mercadoria. Por isso, precisamos amá-la, respeitá-la, reverenciá-la e protegê-la. Isso é responsabilidade de toda a humanidade. A natureza é fonte de vida. No momento, tendemos a pensar que é somente um recurso para a economia, para fazer dinheiro. Isso está completamente errado. A natureza não é meramente um recurso, é uma vida por si só.

    Em 1991, você fundou a Schumacher College, na Inglaterra. Qual é o modelo de ensino seguido na instituição e quais contribuições sociais você espera promover por meio da educação?

    Fundei a Schumacher College na Inglaterra, mas temos muitos estudantes no Brasil [por aqui, há uma unidade da instituição]. Fico muito feliz com isso. A razão pela qual fundei a universidade é que precisamos mudar o nosso sistema de ensino. No momento, educação é uma parte do problema. Como eu disse, guerras, conflitos, aquecimento global e mudança climática, industrialismo e materialismo são criados por pessoas altamente educadas. Esses líderes, que estão no comando da América e da Europa, estudaram em ótimas universidades – Oxford, Cambridge, Harvard e Yale – e estão causando todos esses problemas. Precisamos mudar a educação para que nossos futuros líderes venham com uma nova visão, de como devemos cuidar das pessoas e da natureza, para criarmos a paz no mundo.

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    Em abril, você virá ao Brasil assistir à primeira versão do documentário “Amor Radical”, filme sobre a trajetória de sua vida. O que espera da visita? 

    Eu estou muito ansioso para a minha visita ao Brasil e para todos os lugares que vou conhecer durante duas semanas. Eu amo o Brasil, já estive aí antes. É um país bonito. Minhas expectativas são sempre modestas, e o Brasil sempre me dá muito mais. Mas espero que as pessoas prestem atenção a nossa fundamental necessidade de humanidade, em como podemos viver em harmonia com a natureza e entre nós mesmos. No momento, a sociedade brasileira está dividida, desconectada. Além disso, estou curioso para o documentário. Espero que seja interessante e estou lisonjeado que o cineasta brasileiro, Julio, e seu time tenham feito um filme sobre mim. Estou ansioso para assistir, mas tenho total confiança no Julio e no seu time de que fizeram um bom filme. O Brasil é o único país que fez um documentário comigo, será uma alegria e um prazer. 

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