Ego se tornou mais importante do que a natureza, diz Satish Kumar a VEJA
Ativista indiano fala sobre antagonismos do cenário político internacional, crise climática e expectativas com Brasil
O ambientalista indiano Satish Kumar, 87 anos, tem uma história de vida que foge, e muito, do ordinário. Aos nove anos, tornou-se um monge jainista, função que exerceu até os 18, quando aderiu aos ensinamentos de Mahatma Gandhi e entrou na luta pela reforma agrária na Índia. Em meio à Guerra Fria, em 1962, andou por 15 países, em três continentes, em uma marcha contra a ameaça nuclear. Sem levar dinheiro, andou pelas montanhas do Afeganistão, pelo deserto do Irã e enfrentou o frio congelante da Rússia – quando não podia cruzar a pé, pegava carona em barcos. A aventura durou dois anos e meio.
Em abril, ele aterrissará em São Paulo para assistir ao primeiro corte do documentário “Amor Radical”, um filme Original Aquarius, realizado pelo diretor brasileiro Julio Hey, sócio da Café Royal. Filmado entre o Reino Unido e a Índia, o longa trata sobre a impressionante vida do ambientalista. A vinda também está relacionada à Escola Schumacher Brasil, fundada em 2014. Trata-se de uma associação educacional sem fins lucrativos que tem como objetivo instigar, através de cursos, imersões e projetos com organizações, a formação de uma visão de mundo não violenta e ecológica.
Em primeira mão a VEJA, Hey adianta que o filme conta com a participação especial de Vandana Shiva, ecofeminista indiana, física e diretora da Fundação de Pesquisas em Ciência, Tecnologia e Ecologia, em Nova Délhi. A dupla se encontra na fazenda Navdanya, centro de estudos e banco de sementes fundado com ajuda de Kumar.
A VEJA, Kumar fala sobre os antagonismos do cenário político internacional, variando entre indignação e brincadeiras leves a depender do assunto. A respeito da marca de 30 mil mortos na Faixa de Gaza, reflexo das implacáveis operações militares israelenses, franze o cenho e condena a espiral de violência. Sobre a andança pacifista, a epopeia de sua vida, relembra, sem tirar o sorriso do rosto, uma curiosa história sobre como uma xícara de chá pode ser capaz de fazer líderes mundiais abaixarem a guarda e conversarem sobre o futuro da humanidade – distante da devastação das bombas nucleares e do ego moderno, mas próximo da paz.
Na Guerra Fria, você andou por três continentes num protesto antinuclear. Como vê as recentes ameaças do russo Vladimir Putin sobre suas armas “capazes de destruir a civilização”, caso tropas da Otan entrem na Ucrânia?
Acho a guerra na Ucrânia totalmente desnecessária. Tanto Putin quanto países ocidentais são responsáveis por esse conflito. Eu acho que Putin, Zelensky, Biden, todos esses líderes, deveriam sentar todos juntos e tomar uma xícara de chá. Quando eu estava caminhando pelo mundo, em 1962, estava na Geórgia, próximo ao Mar Negro. Conheci duas mulheres em uma fábrica de chá e me convidaram para tomar uma xícara com elas. Um delas foi a um depósito e voltou com quatro pacotes de chá e disse: “Eu quero que você seja meu embaixador, meu mensageiro, e entregue um pacote para o líder do Kremlin, do Palácio do Eliseu, da Downing Street e da Casa Branca. E, por favor, mande o meu recado: se você tiver algum conflito, situação de guerra ou ameaça nuclear, tire um minuto e tomem um chá fresco juntos e conversem sobre o problema”. A chave para a morada da paz é o amor e a negociação, não bombas.
Durante a marcha pela paz, você não carregou recursos e confiou na compaixão de outras pessoas para ter abrigo e comida. Como foi essa experiência?
Eu e meu amigo decidimos que não levaríamos dinheiro porque as guerras começam com o medo. A paz começa na confiança. Por dois anos e meio, andamos 13 mil quilômetros sem recursos. Para todos os lugares que íamos, entregamos um folheto, explicamos que estávamos marchando pela paz e falamos que se alguém quisesse nos receber por uma noite, ficaríamos muito gratos. E quando as pessoas conversavam conosco, ficavam curiosas e faziam várias perguntas. Então, muitas nos ofereceram comida, hospedagem para a noite, roupas, sapatos, chapéus, tudo o que precisássemos em prol da paz. Pessoas são pessoas em todos os lugares. Eu amo cada um deles, amo a humanidade.
Especialistas são enfáticos de que nas guerras há uma “vítima silenciosa”: a natureza. Os efeitos nocivos das guerras sobre habitats, ecossistemas e o meio ambiente são, muitas vezes, jogados para escanteio?
É por causa do ego e do orgulho. Os egos nacionais e coletivos tornam-se mais importantes do que o meio ambiente. Então, estão preparados para destruir o nosso habitat natural, para poluir o meio ambiente, a lançar emissões de carbono e gases de efeito estufa, a matar seres humanos e destruir edifícios, a colocar bombas no solo e contaminá-lo só por causa do orgulho, em nome da nação, da bandeira, da religião, o que quer que seja. Nós somos seres humanos. A palavra “humanos” e “humanidade” vêm da mesma raiz etimológica. Se não há humanidade, então, não somos humanos. A humildade é um princípio primordial. Mas, no momento, os Estados Unidos, Rússia, Israel e Hamas sofrem pela arrogância.
Como ferrenho defensor da não violência, acredita em uma possibilidade de paz no conflito entre Israel e Hamas? São mais de 30 mil palestinos mortos desde outubro, assim como 1.100 israelenses.
O caminho para o fim do conflito é parar de culpar uns aos outros. Israel culpa Hamas, Hamas culpa Israel, falando: Israel tem ocupado nossa terra há quase 80 anos. Israel diz que Hamas começou o terrorismo. Culpar uns aos outros não é a solução. Eles precisam dizer: “o passado é passado”. Setenta ou oitenta anos de ocupação são passado; o que o Hamas fez, também; o que Israel fez, ao matar 30 mil pessoas, é passado. E olhe: Hamas matou mais de mil [israelenses]; Israel matou mais de 30 mil pessoas e 70 mil estão feridas – tantas mulheres e crianças mortas; edifícios, solo e meio ambiente [devastados]. Esse não é o caminho, isso não é política e diplomacia, não é sanidade e humanidade. É total e clara estupidez. Então, digo: esqueça o passado. Não há como desfazê-lo. Vamos construir um futuro.
O Brasil é sede do G20 neste ano e sediará a COP30 no ano que vem. Quais são suas expectativas para esses encontros?
Minha esperança é que Lula seja um ótimo presidente e, para isso, precisa deixar um bonito legado para o futuro. Então, eu diria ao Lula: seja um estadista, não um político. E, para isso, você precisa olhar para todos os brasileiros, quem quer que seja, onde quer que estejam. Deixe para lá os aspectos políticos e econômicos que os separam. Todos são brasileiros e todos deveriam ser felizes. Mas os mais pobres, as crianças, a floresta e o rio devem ser levados em consideração primeiro. Se fizer isso, será um bom presidente. As conferências internacionais vêm apenas em segundo lugar. O Brasil é um país grande, e não deveria ser pobre. Por que ainda existem crianças famintas? Isso deveria ser uma vergonha. Exporta comida para a China e Estados Unidos, mas não tem comida para a própria população? É uma contradição, uma inconsistência.
Você afirma que, hoje, existe uma “separação imaginária entre os seres humanos e a natureza”. O que seria essa divisão?
Nós somos natureza. O significado etimológico de natureza significa nascimento. Então, todo ser que nasce é natureza. Todos nós somos feitos de terra, ar, fogo e água – árvores, montanhas, animais e seres humanos. Os humanos e a natureza não estão separados. E nós não estamos acima do meio ambiente, não somos superiores, mas parte integral. O que fazemos para a natureza, fazemos para nós. Se poluirmos, estamos nos poluindo – se contaminamos a água, temos de bebê-la; se poluirmos o ar, de respirá-lo.
A natureza não é uma máquina, é uma comunidade de seres vivos. Não é uma mercadoria. Por isso, precisamos amá-la, respeitá-la, reverenciá-la e protegê-la. Isso é responsabilidade de toda a humanidade. A natureza é fonte de vida. No momento, tendemos a pensar que é somente um recurso para a economia, para fazer dinheiro. Isso está completamente errado. A natureza não é meramente um recurso, é uma vida por si só.
Em 1991, você fundou a Schumacher College, na Inglaterra. Qual é o modelo de ensino seguido na instituição e quais contribuições sociais você espera promover por meio da educação?
Fundei a Schumacher College na Inglaterra, mas temos muitos estudantes no Brasil [por aqui, há uma unidade da instituição]. Fico muito feliz com isso. A razão pela qual fundei a universidade é que precisamos mudar o nosso sistema de ensino. No momento, educação é uma parte do problema. Como eu disse, guerras, conflitos, aquecimento global e mudança climática, industrialismo e materialismo são criados por pessoas altamente educadas. Esses líderes, que estão no comando da América e da Europa, estudaram em ótimas universidades – Oxford, Cambridge, Harvard e Yale – e estão causando todos esses problemas. Precisamos mudar a educação para que nossos futuros líderes venham com uma nova visão, de como devemos cuidar das pessoas e da natureza, para criarmos a paz no mundo.
Em abril, você virá ao Brasil assistir à primeira versão do documentário “Amor Radical”, filme sobre a trajetória de sua vida. O que espera da visita?
Eu estou muito ansioso para a minha visita ao Brasil e para todos os lugares que vou conhecer durante duas semanas. Eu amo o Brasil, já estive aí antes. É um país bonito. Minhas expectativas são sempre modestas, e o Brasil sempre me dá muito mais. Mas espero que as pessoas prestem atenção a nossa fundamental necessidade de humanidade, em como podemos viver em harmonia com a natureza e entre nós mesmos. No momento, a sociedade brasileira está dividida, desconectada. Além disso, estou curioso para o documentário. Espero que seja interessante e estou lisonjeado que o cineasta brasileiro, Julio, e seu time tenham feito um filme sobre mim. Estou ansioso para assistir, mas tenho total confiança no Julio e no seu time de que fizeram um bom filme. O Brasil é o único país que fez um documentário comigo, será uma alegria e um prazer.