Em meio ao mar de incertezas que agita a Venezuela desde as eleições presidenciais de 28 de julho, uma convicção se desenha, infeliz: Nicolás Maduro permanecerá no poder, frustrando a esperança de mudança que floresceu nas ruas de Caracas. É uma vitória sem provas, amparada por uma realidade fabricada. Nela, o Conselho Nacional Eleitoral (CNE), órgão que trocou a neutralidade por uma maioria chavista, confirmou que Maduro foi reeleito com mais da metade dos votos, mas os dados — ó, surpresa! — teriam se perdido em um suposto ciberataque promovido pela oposição e por Elon Musk, o dono do X, mancomunados. A Suprema Corte, igualmente cooptada pelo regime, ratificou o resultado, indo contra o clamor da população, que segue protestando nas ruas, e o rechaço da comunidade internacional. O jornalista Elio Gaspari descreveu em A Ditadura Escancarada como, após o AI-5, o despotismo “envergonhado” dos militares brasileiros foi substituído por um regime abertamente violento. Agora, a história se repete à moda venezuelana: com a força a seu dispor, Maduro aperta o nó do autoritarismo.
Segundo a ONU, um “clima de medo” instalou-se na Venezuela desde que o governo lançou a chamada Operación Tun Tun, em que forças de segurança chutam portas país afora. Nas casas de manifestantes, pintadas com um “X”, as prisões ocorrem com base em vídeos de atos da oposição, em vez de mandados. Quem discorda do regime corre sério risco de ser silenciado. Novo lema da Guarda Nacional: “duvidar é traição”. A perseguição já matou quase trinta pessoas e prendeu 2 200. Mais de 100 funcionários da petrolífera estatal (PDVSA) que foram aos protestos acabaram demitidos. Figuras emblemáticas da oposição estão desaparecidas, e Maduro encoraja o povo a usar sem dó o aplicativo VenApp, criado como linha com o governo para solicitar serviços e hoje desvirtuado para denunciar dissidentes. Em intensa atividade, o ditador aproveitou para mudar o gabinete, reforçando o poder de aliados fiéis — como Diosdado Cabello, conhecido pelas mãos de ferro, agora no ministério do Interior, que cuida da repressão.
Um representante da oposição no Conselho Eleitoral disse que nunca teve acesso às atas de votação, imprescindíveis para comprovar a lisura do resultado, e fiscais de urna vieram a público declarar que, nas suas seções, Maduro “levou uma surra”. Nada disso faz diferença na realidade paralela do governo. “Como uma sanfona, a violência aumenta ou diminui de acordo com a pressão sobre Maduro”, descreve Paulo Velasco, professor de relações internacionais da Uerj. No controle das instituições e do aparato de segurança, o governo aprendeu a calibrar suas reações. “Como as circunstâncias políticas nunca foram tão desfavoráveis, a ditadura mostra as garras”, explica Velasco.
Ao lado da impopularidade que acumula há tempos, Maduro enfrenta agora uma oposição que, historicamente fragmentada, solidificou-se em torno da ex-deputada María Corina Machado, líder do movimento pró-democracia impedida de concorrer, e de Edmundo González, o candidato que se afirma eleito e que ela apoia. Além disso, o regime nunca esteve tão isolado — nem aliados fiéis, como Gustavo Petro, da Colômbia, e o brasileiro Lula, reconheceram sua reeleição.
O governo, como já aconteceu outras vezes, aposta no tempo — e na resistência de “seus” militares e “suas” instituições — para sair dessa. “A oposição, por brigas internas ou cansaço, não conseguirá se manter tão mobilizada no longo prazo”, avalia Leandro Lima, cientista político da USP. Distanciando-se do ideal bolivariano de integração regional, Maduro se aninha hoje no colo de autocratas como Vladimir Putin, da Rússia, Xi Jinping, da China, e Recep Erdogan, da Turquia, e conta com eles para comprar seu petróleo e manter viva a economia, ainda que por aparelhos.
Analistas acreditam que a única maneira de desatar o nó seria uma transição negociada que blindasse Maduro e seus asseclas de investigações internas e da ação do Tribunal Internacional de Haia. A possibilidade de anistia foi levantada, inclusive, por María Corina, mas sentar-se à mesa de negociação são outros quinhentos. “Enquanto tiver a lealdade das Forças Armadas, ele não tem por que fazer concessões”, diz Carolina Pedroso, da Unifesp, referindo-se aos 2 000 generais que sustentam o chavismo, colhendo as benesses de cargos públicos e lucros com o petróleo. Enquanto isso, a máquina de repressão vai moendo sonhos na Venezuela.
Publicado em VEJA de 30 de agosto de 2024, edição nº 2908