Faltando quase nada para o 5 de novembro, dia da eleição presidencial americana, Kamala Harris, 60 anos, a candidata democrata, e Donald Trump, 78, seu rival republicano, travam uma batalha épica pela Casa Branca, refletida na dramática situação de virtual empate nas pesquisas — ela com 48%, ele com 47%, segundo o agregador FiveThirtyEight, da rede de televisão ABC. Neste ponto do embate, não só os americanos, mas o mundo todo aguarda o resultado da votação em estado de ansiedade máxima, com razão: ele definirá os rumos da maior potência do planeta, e os Estados Unidos que cada um promete trilharão caminhos opostos entre si.
Vistos de dentro da sociedade rachada ao meio, tanto a democrata elegante e acolhedora quanto o experiente e carismático showman republicano, cada qual com sua plataforma, empolgam multidões e acendem esperanças de que, vitoriosos, impedirão a derrocada da nação em um perigoso abismo. Vistos de fora, desapaixonadamente, ambos perdem parte do brilho. O país de Harris aponta para mais do mesmo, enraizando as deficiências de uma potência meio capenga que tem dificuldade de se impor externamente e de curar os males internos. O de Trump, por sua vez, será durão, inclinado ao autoritarismo e disposto a anular direitos adquiridos em nome de Deus e da família.
Harris escolheu um local simbólico da capital, Washington, para realizar seu último grande comício: o parque próximo à Casa Branca onde, em 2021, Trump convocou apoiadores a contestar a derrota para Joe Biden — de lá, parte deles andou 3 quilômetros e se uniu à turba que invadiu o Congresso, no fatídico 6 de janeiro. Diante de uma entusiasmada multidão, calculada em 75 000 pessoas, ela reiterou ser um amplamente almejado sopro de renovação na política, em contraste com o adversário voltado para o passado, a quem mais uma vez chamou de “fascista”, uma subida de tom recente na campanha. “Será a eleição mais importante das suas vidas”, afirmou. Sua agenda incluiu ainda palanques recheados de artistas — Beyoncé fez uma escala especial para uma festança no Texas, estado onde os democratas não têm a menor chance — e uma maratona pelos cobiçados estados-pêndulo, como Michigan e Pensilvânia, que devem decidir a eleição.
Trump, por sua vez, reuniu 20 000 fãs enlouquecidos no Madison Square Garden, célebre arena de esportes e shows em Nova York, premiados com as presenças do bilionário Elon Musk, arroz de festa da campanha, e até de Melania, que quase não aparece e fez o discurso de apresentação do marido. Um tropeço inicial teve grande repercussão, quando um humorista, apropriando-se de uma fala anterior de Trump sobre os Estados Unidos serem “a lata de lixo do mundo” por culpa dos imigrantes, chamou Porto Rico de “ilha de lixo flutuante”, despertando indignação da numerosa comunidade porto-riquenha e de celebridades com origem no território, como Ricky Martin e Jennifer Lopez. Seguiram-se vários pronunciamentos de convidados, repletos de insultos e provocações, até a apoteose — a fala de 78 minutos do próprio Trump, prometendo ser sua eleição o “dia da libertação” da “ocupação” dos estrangeiros ilegais e proclamando, pela milésima vez, “Kamala, você está demitida”, frase tirada de seu extinto reality show O Aprendiz.
O tom das campanhas — um, depreciativo e pretensioso, outro, raivoso e ofensivo — ecoa a distância entre as duas candidaturas. Pressionada pela boa avaliação de Trump nas finanças, em seus quatro anos de poder, Harris tenta se distanciar do chefe, Joe Biden, que carrega nas costas até hoje o peso da inflação provocada pela pandemia (muito embora ela esteja sob controle e a economia dê sinais de crescimento). Sem apresentar até hoje um projeto consistente na área — o que também arrepia os especialistas —, ela lança mão de promessas populistas sem bases sólidas, como a de controles para impedir altas excessivas de preços nos supermercados e a construção de 3 milhões de novas moradias para combater o ascendente custo da casa própria. Outro passo anunciado por ela é a subida dos impostos para os ricos, visando arrecadar mais dinheiro para investir em infraestrutura e programas sociais. “Vamos criar uma economia de oportunidades para a classe média”, diz Harris, de olho no eleitor desalentado com a administração Biden.
A plataforma do Partido Republicano, na outra ponta, estabelece um plano de vinte pontos para revitalizar a economia dos Estados Unidos, fortalecer as fronteiras e interromper o que classifica de “declínio americano”. A agenda inclui expandir o poder do presidente, espalhar aliados pela máquina administrativa, reformular o Departamento de Justiça e usar seus mecanismos para processar adversários e desidratar agências reguladoras. Na política externa, Trump seguirá na linha do primeiro mandato, dando pouca atenção ao que não diz respeito diretamente aos EUA e interferindo sem disfarces no que afeta o país — estratégia que compromete alianças com entidades como a Otan, deve levar a um corte na ajuda militar à Ucrânia no esforço de guerra contra a Rússia e reforçar a posição de dureza do governo do primeiro-ministro israelense, Benjamin Netanyahu, ao impor sangue no Oriente Médio.
Na economia, ponto forte da sua candidatura, enfim, Trump promete ser uma máquina ceifadora de impostos, tanto da população em geral — sobre gorjetas, sobre horas extras, sobre gastos com o cuidado de idosos, até sobre o imposto de renda —, que sonha recuperar o poder aquisitivo pré-pandemia, quanto das grandes corporações, como forma de acelerar o crescimento do PIB. O companheiro Elon Musk, pré-apontado auditor-mor da República, já anunciou seu plano de podar os gastos do governo em 2 trilhões de dólares. É ainda intenção de Trump penalizar empresas que transfiram operações para o exterior e premiar as que voltem a produzir nos Estados Unidos. Na mesma seara protecionista, ele pretende compensar a perda da receita tributária impondo tarifas sobre tudo o que vem de fora — “Serei o homem-tarifa”, proclama.
Sob o argumento de que assim estará protegendo empregos e indústrias americanas, o republicano antecipa taxar em até 20% todas as importações e em 60% as da China, com quem abriu uma guerra comercial no primeiro mandato e dá indícios de querer apertar ainda mais os parafusos agora. São propostas ousadas — segundo o banco suíço UBS, só as tarifas provocariam uma contração de até 10% no mercado de ações. “Outra consequência direta será o repasse dos custos aos consumidores, elevando a inflação e os juros”, diz Robert Lawrence, economista da Universidade Harvard. “No cenário internacional, as taxas anunciadas provocariam retaliações de outros países, travando o crescimento mundial.”
Política externa e economia são as duas áreas em que a eleição americana pode afetar o Brasil, embora a visão geral é de que, quem quer que saia vencedor, as consequências não tendem a ser de grande escala. Acredita-se que Harris vá ser uma continuação do governo Biden, que pouca interferência teve por aqui. Já os planos de Trump podem, sim, afetar o comércio entre os dois países, mas o Brasil é, sobretudo, um grande fornecedor de commodities essenciais, provavelmente menos impactadas pelo prometido tarifaço trumpista. Inevitável mesmo, no caso de uma vitória de Trump, será seu transbordamento para o campo bolsonarista, que celebrará a conquista da Casa Branca como se fosse sua. Já o governo Lula manterá a maior distância protocolar possível — na América do Sul, o grande amigo de Trump é justamente seu desafeto, o presidente Javier Milei, da Argentina.
No que diz respeito à economia verde, Harris, ativista de longa data, diz que vai dar seguimento à ambiciosa agenda de descarbonização montada pelo atual governo, o que pode trazer benefícios para o Brasil. Trump, por seu lado, vai na linha diametralmente oposta: pretende anular acordos de redução de emissões e expandir a exploração de gás e petróleo para baixar os custos de energia. Na pauta dos costumes, igualmente, a visão dos dois bate de frente. A constante e incisiva defesa do direito de acesso ao aborto é um dos pontos mais vigorosos da campanha dela — foi a Suprema Corte forjada no governo Trump que anulou essa prerrogativa, indo contra a preferência da maioria da população americana.
A candidata democrata também apoia as conquistas da comunidade LGBTQIA+, os tratamentos para redefinição de gênero e a legalização da maconha, entre outras posições progressistas — talvez até demais, um receio sempre manifestado por eleitores indecisos. Do lado trumpista, a impopular questão do aborto foi colocada em segundo plano, enquanto sobem de tom as críticas ao debate identitário e à cultura woke em geral — embolando na condenação aos excessos politicamente corretos a anulação de conquistas sociais arduamente alcançadas. A pregação republicana martela ainda na tecla do nacionalismo, um tema que os democratas cooptaram, e na defesa de um país mais cristão e mais apegado aos valores tradicionais, assuntos em que Harris não toca.
A imigração ilegal segue sendo um fator-chave na mobilização trumpista para “fazer a América ser grande novamente” — o célebre MAGA, na sigla em inglês. Calcula-se que 10 milhões de pessoas tenham cruzado a fronteira sem autorização durante o governo Biden, um número estarrecedor que o trumpismo demoniza ainda mais com mentiras e teorias conspiratórias. Harris, filha de imigrantes legais (a mãe, indiana, e o pai, jamaicano) e inicialmente simpática a um tratamento humanitário aos estrangeiros sem documentação, mudou de lado e agora defende uma reforma do sistema que imponha controles à sua entrada. Já Trump insiste em uma resposta imediata e dura — “a maior deportação da história”, que expulsaria milhões da noite para o dia. “É um passo muito mais radical do que a promessa de erguer um muro na fronteira, feita em 2016, e teria enormes consequências para o país”, avalia Chris Zepeda-Millán, professor de políticas públicas da Universidade da Califórnia em Los Angeles.
Por mais que repisem propostas ao longo da campanha, porém, os dois candidatos sabem que, uma vez no governo, terão de se render ao pragmatismo, porque a realidade não vive de retórica. Ainda que esgarçado por anos de polarização, o modelo político americano foi desenhado com um sábio sistema de freios e contrapesos que atua como salvaguarda dos pilares democráticos, impedindo abusos de poder. Quem for eleito também terá de lidar com um novo Congresso. A Câmara de Representantes, presidida pelo republicano Mike Johnson, vai renovar suas 435 cadeiras, enquanto no Senado, hoje com apertada maioria democrata, 34 assentos (um terço) estão em disputa.
Perto da hora H, mais de 60 milhões de pessoas já anteciparam seu voto, seja pelo correio, seja em zonas eleitorais abertas com antecedência, o que representa quase 30% dos 155 milhões de eleitores que foram às urnas em 2020. “Não há favoritos. A substituição de Biden por Kamala energizou a candidatura democrata, mas Trump conta com uma base muito fervorosa e vem atraindo novos segmentos”, diz Barbara Perry, cientista política da Universidade da Virgínia. Com resultados previsíveis em 43 dos cinquenta estados, Harris tem 226 votos no Colégio Eleitoral, contra 219 de Donald Trump, segundo estimativa do site FiveThirtyEight. Restam, nessa conta, 93 delegados em disputa, distribuídos por Arizona, Geórgia, Michigan, Nevada, Carolina do Norte, Pensilvânia e Wisconsin, os sete estados decisivos. Nas mãos deles estará o decorrer dos próximos quatro anos nos Estados Unidos — e, por tabela, no planeta.
Publicado em VEJA de 1º de novembro de 2024, edição nº 2917