Quase um mês depois da eleição que consagrou a volta de Donald Trump à Casa Branca e a conquista pelos republicanos da maioria na Câmara e no Senado, o Partido Democrata americano segue atordoado, à deriva, com seus caciques atolados na mais intensa discussão da relação em décadas. Nas entrevistas e análises que tomam conta dos noticiários, blogs e podcasts, congressistas de alta plumagem, estrategistas e autoridades tecem uma infinidade de teorias para tentar explicar a derrota da vice-presidente Kamala Harris e a decepção na votação legislativa.
Nos bastidores, o clima é de guerra, com a ala mais conservadora denunciando a esquerda por radicalizar a agenda de costumes e o bloco progressista acusando os moderados de priorizar uma agenda econômica que favorece as elites das grandes cidades e ignora os anseios dos menos favorecidos. No balanço, os dois lados têm culpa no cartório.
O diagnóstico mais contundente partiu do senador Bernie Sanders, socialista que concorre como independente e vota com os democratas. “O Partido Democrata foi monopolizado pela política identitária e não se dá conta de que a vasta maioria das pessoas neste país é da classe trabalhadora”, disparou. “Vamos ver se ele tem capacidade de se renovar, dada a sua dependência de financiadores e consultores”, acrescentou, desatando uma troca de acusações que já dura semanas. Nancy Pelosi, ex-presidente da Câmara e tida como um falcão da ala pragmática, rebateu argumentando que os democratas jamais abandonaram suas bases e que a responsabilidade pela derrota é de Joe Biden. “Se o presidente tivesse saído antes, poderia haver outros candidatos na corrida”, disse. A escolha em cima da hora, é verdade, impediu o surgimento de um nome forte durante o processo de eleições primárias. “A derrota se deve a vários fatores, mas o principal é que os democratas falharam em criar uma mensagem eficaz contra Trump e em atentar para a insatisfação com o governo Biden”, diz Heather Richardson, historiadora do Boston College.
A rigor, o mau humor dos eleitores com a economia, a imigração e as questões identitárias foi percebido e abordado por Biden e, mais ainda por Harris, que deu meia-volta em princípios do partido e tentou dourar a pílula do “radicalismo progressista”. Ao que tudo indica, porém, o vigor foi aquém do necessário. As mudanças na sociedade que Trump descortinou e soube explorar estão, há já algum tempo, provocando um realinhamento de forças dentro do Partido Democrata.
Uma análise das propostas de deputados democratas em andamento mostra maioria de posições mais alinhadas à direita, sobretudo as que estão relacionadas com a imigração, hoje um fantasma que Trump colou ao crime e que aterroriza os americanos. Ciente da sensibilidade do tema junto à opinião pública, a governadora democrata do Arizona, Katie Hobbs, afastou-se da tradicional complacência partidária com os ilegais e defende tolerância zero para eles. Ela reforça que essa “não é uma questão republicana ou democrata” e que vai trabalhar “com qualquer um” para manter a fronteira segura.
Por quase um século, o Partido Democrata foi “o partido do povo”, que servia em Washington de barreira contra os interesses dos poderosos, mais alinhados com os republicanos. Ao longo da última década, porém, o povo — pretos, latinos, pessoas sem formação universitária, moradores da área rural, enfim, quem ganha menos — foi perdendo emprego e poder aquisitivo, se assustando com o radicalismo das questões de gênero, se sentindo acuado no quesito segurança e, aos poucos, se afastou e se desiludiu com a elite política que manda no país. O novato Trump, tarimbado showman, introduziu em sua primeira campanha uma retórica populista que enfraqueceu ainda mais os laços entre democratas e eleitores e promoveu a mudança tectônica agora observada.
Pesquisa recente do instituto Pew Research aponta que metade dos americanos concorda que o Partido Republicano representa os interesses de pessoas como eles, o maior índice desde que Trump entrou em cena, em 2016, enquanto 43% acham o mesmo sobre os democratas, a primeira vez em oito anos que a legenda ficou na lanterna. A reconstrução começa em 1º de fevereiro, dez dias após a posse de Trump, quando o Comitê Nacional elegerá o próximo líder democrata — e não haver um nome óbvio diz muito sobre a confusão lá dentro. Uma de suas tarefas será justamente incentivar a ascensão de lideranças da nova geração, capazes de galvanizar novamente o público. “O partido precisa oferecer uma visão de futuro aos que hoje se sentem deixados para trás”, avalia Jeremy Paul, cientista político da Northeastern University. E rapidamente, porque as eleições de meio de mandato estão logo ali na esquina.
Publicado em VEJA de 29 de novembro de 2024, edição nº 2921