O ex-primeiro-ministro britânico David Cameron certa vez descreveu seu sucessor, Boris Johnson, como um “leitão untado”, o tipo de político capaz de escapar de qualquer situação difícil. Menos rudemente, a mídia compara sua impermeabilidade a escândalos — e não foram poucos ao longo da carreira — com a ressurreição de Lázaro na Bíblia. Desfrutando essa fama, e um desajeitado e descabelado carisma, Johnson levou seu partido a conquistar maioria de oitenta cadeiras no Parlamento em 2019, maior feito de um líder conservador desde Margaret Thatcher, em 1987. Pois com todo esse cacife, o primeiro-ministro, neste momento, está mais para leitão no espeto: submetido a uma moção de desconfiança de sua liderança dentro da legenda, safou-se por 211 votos contra 148, o que significa que 40% de seus próprios parlamentares não põem fé na sua atuação. É mais do que amargou sua atormentada antecessora, Theresa May, em 2019 — e ela renunciou quatro meses depois.
O motivo mais evidente do descontentamento com Johnson é a revelação de que, em plena pandemia, festinhas seriais foram organizadas entre as quatro venerandas paredes do número 10 de Downing Street, a sede do gabinete (e onde, em um apartamento separado, ele mora com a mulher, Carrie, e os dois filhinhos pequenos). Em duas delas, Johnson em pessoa aparece em vídeos, de copo na mão e sorriso aberto. O vexame foi documentado em um relatório oficial que descreve funcionários bêbados, vômito nos tapetes e móveis quebrados, condena as “falhas de liderança e bom senso” e cobra dele assumir a devida responsabilidade. O relatório contabiliza ao menos dezesseis festas pelas quais 83 pessoas foram multadas por infringir os protocolos anti-Covid — uma delas o próprio Johnson, o primeiro chefe de governo a passar por tal constrangimento.
A revelação do chamado Partygate pegou muito mal entre a população ressentida com a proibição, durante meses a fio — como, de resto, o planeta inteiro —, de sair de casa e se encontrar com amigos e parentes. Mas não foi só por isso que 148 parlamentares, em voto secreto, removeram sua confiança em Johnson. Até hoje muitos não se conformam com a influência exercida pela despachada e vingativa Carrie, que fez parte da equipe de mídia do partido. Ela teria posto lenha na fogueira para a demissão de ministros e exerceria influência indevida sobre as decisões do primeiro-ministro. A facção anti-Carrie deve ter rido à toa ao ver o casal ser vaiado na entrada da Abadia de Westminster, no Jubileu de Platina da rainha Elizabeth — mais uma comprovação do mau momento de Johnson.
Juntando Carrie, o Partygate, o caos do governo no início da pandemia e a atual crise econômica, com inflação de dois dígitos, às chacoalhadas do Brexit, o resultado é um Partido Conservador em má situação nas pesquisas de intenção de voto: ele tem 32% de apoio, 7 pontos a menos do que o Partido Trabalhista, de oposição, e nas eleições regionais de maio perdeu em diversos e importantes redutos. A próxima eleição está prevista para 2024, mas pode ser antecipada e uma eventual troca de primeiro-ministro em tese melhoraria as chances dos tories. A sorte de Johnson é que não há sucessor à vista. O mais cotado, Rishi Sunak, ministro da Economia, também foi multado por causa das festinhas, entre outros escândalos, e está, ao menos temporariamente, fora do páreo.
Por outro lado, a atuação na guerra da Ucrânia, com remessas de armamentos e encontro em Kiev com o presidente Volodymyr Zelensky, rende pontos a Johnson neste momento. “Mas essas são desculpas e não razões para ele permanecer no poder”, afirma Iain McLean, professor de política da Universidade de Oxford. “O que o segura mesmo é a folha de pagamento, ou seja, os parlamentares que ocupam cargos no seu governo.” Dos 211 votos de confiança que ele obteve, 130 estariam na tal folha.
Para cair nas graças dos eleitores, Johnson anunciou um pacote de bondades que inclui o repasse de 15 bilhões de libras para proteger famílias pobres contra a inflação e facilidades para a compra de casa própria. No campo da diplomacia, coloca-se na liderança de uma obscura Força Expedicionária Conjunta, uma espécie de Otan B formada por países europeus menos importantes que teria mais liberdade para despachar tropas contra a Rússia. “Essas ações são vistas pelos conservadores como dinheiro demais para resultados de menos. Não terão resultado rápido e provavelmente serão derrotadas no Parlamento”, avalia Lawrence Hamilton, professor da Universidade de Cambridge. Se o passado reflete o futuro, todos os primeiros-ministros submetidos a moções de desconfiança acabaram sendo despachados antes do fim do mandato. A chapa anda fervendo para Boris, o ex-leitão untado.
Publicado em VEJA de 15 de junho de 2022, edição nº 2793