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Coronavírus: a operação do governo para resgatar brasileiros da China

Súplica em vídeo foi gravada em Wuhan, o epicentro da epidemia que deixa o mundo em alerta e alimenta a xenofobia

Por Denise Chrispim Marin Atualizado em 4 jun 2024, 14h55 - Publicado em 7 fev 2020, 06h00
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  • As redes sociais, de novo elas, foram decisivas para selar o destino de um grupo de brasileiros que pedia para ser resgatado de Wuhan, cidade da China onde surgiu o coronavírus batizado de 2019-nCoV e de onde ele se espalhou por mais de vinte países. Integrantes do governo Bolsonaro sustentavam que trazer essas pessoas para o Brasil representaria um enorme risco de a epidemia acabar grassando por aqui e que, além disso, não havia uma legislação para estabelecer a quarentena. No domingo 2, um vídeo de seis minutos que logo viralizaria — com texto clamando pelo retorno, lido por catorze desses brasileiros — faria o até então titubeante Palácio do Planalto bater o martelo: horas depois, foi anunciada a montagem de uma operação para a retirada de 34 pessoas de Wuhan. Também o Congresso votou às pressas a lei que, entre outras medidas, torna obrigatória a quarentena nesse caso. Dois aviões VC-2 da Presidência decolaram na quarta-feira 5 para cumprir a missão. O pouso estava previsto para o sábado 8, na Base Aérea de Anápolis, em Goiás, onde o grupo passará dezoito dias em isolamento nas instalações do Exército.

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    COTIDIANO DE PÂNICO –
    Há quatro anos na China, o potiguar Rodrigo Silva Duarte, professor de judô em Wuhan, decidiu na última hora não embarcar no voo da FAB de volta para o Brasil. Namorado de uma chinesa, alegou “razões pessoais”, mesmo ciente de que “a cada dia o risco de contaminação cresce”. A epidemia arrasou a cidade. “Está tudo fechado: cinemas, lojas, sem previsão para reabrir”, conta Duarte, que não tira os pés de casa. (./Arquivo pessoal)

    Até a quinta-feira 6, nenhum brasileiro havia sido diagnosticado com o vírus cujos sintomas se assemelham aos de uma gripe e que causa pneumonia. Nove seguem internados sob suspeita. Em alta velocidade, mais de 28 000 infectados foram confirmados mundo afora, deixando um rastro superior a 560 mortes, apenas duas delas fora da China — uma nas Filipinas e outra em Hong Kong. Pelo fato de a crise estar circunscrita à Ásia, a Organização Mundial da Saúde (OMS) ainda descartava classificá-la como pandemia. O número de pessoas com o vírus já ultrapassou o de outras epidemias de grande escala, como a síndrome respiratória aguda grave, a Sars, que apareceu em 2002. Mas a de agora, do ponto de vista estatístico, mata menos: a taxa de mortalidade, baixa, é de 2% dos infectados.

    A operação comandada pelo Ministério da Defesa envolveu o Itamaraty e as pastas da Saúde e da Casa Civil e foi desencadeada depois de vários outros países tirarem seus cidadãos de Wuhan. O fato de os Estados Unidos já terem repatriado 350 pessoas pesou na decisão do governo brasileiro, que encaminhou uma solução de confinamento nos moldes estabelecidos pela equipe de Donald Trump. Morando há quatro anos em Wuhan, onde ensina judô, o gaúcho Rodrigo Silva Duarte, de 28 anos, vive fechado em casa desde 18 de janeiro (leia o depoimento de Duarte na pág. 59). Ele tem medo de ser contaminado. Antes do sinal positivo de Brasília para o resgate, relatou a VEJA sua aflição diante da possibilidade de ter de permanecer na China. “A cada dia aumenta o risco para nós. A remoção precisa ser feita enquanto há tempo”, disse. Na última hora, alegando “razões pessoais”, possivelmente por causa da namorada chinesa, ele deu um jeito de engavetar o medo — e ficou. Outros cinco brasileiros decidiram permanecer na cidade e seguirão monitorados pela embaixada em Pequim.

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    “EU NÃO SOU UM VÍRUS” – Campanha nas redes e nas passarelas: asiáticos e descendentes reagem ao preconceito (./.)
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    Entre os 27 brasileiros e quatro familiares chineses que voltam para o Brasil, nenhum apresenta sintomas de contaminação. Em boa medida, segundo contam, porque adotaram uma rotina de extrema limpeza e se resguardaram em casa, isolados dos riscos de contágio. Só saíam às ruas esvaziadas de Wuhan para comprar alimentos — cada vez mais raros nos mercados. A ausência de febre, tosse, dor de garganta e outros sinais, contudo, não os dispensará da quarentena, a que também estarão sujeitos os tripulantes das aeronaves e três diplomatas brasileiros que, por ordem de Pequim, terão de acompanhar o voo. Cada um vai ser alojado em um quarto individual na base de Anápolis e examinado três vezes por dia. A viagem, medida de segurança que certamente os afastará do vírus, é postura prudente e adequada — e que, somando-se a resoluções similares de outros cantos do mundo, amplia um momento delicado para o governo chinês, forçado a admitir o que no início chegou a esconder.

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    MAL-VINDOS – Vietnã: o cartaz avisa que chineses estão vetados no salão (Sophie Carsten/Reuters)

    O presidente Xi Jinping definiu o enfrentamento da epidemia como “o maior teste do sistema chinês e de sua capacidade de governança”. Os esforços para pôr em marcha a monumental máquina chinesa de planejamento e execução tornaram-se visíveis com a entrega, na segunda-feira 3, do primeiro dos dois novos hospitais com mais de 1 000 leitos para atender os enfermos de Wuhan — o outro foi inaugurado na quarta-feira 5. Um feito reconhecido pela OMS, que teceu elogios à China. Também circulam imagens, submetidas a censura, do outro lado da crise, o das dificuldades, que ajudam a dar a dimensão correta do drama: são doentes sem atendimento em emergências lotadas e enfermeiras exaustas dormindo em cadeiras. Causou comoção global a foto de um menino de 16 anos numa cadeira de rodas. Yan Cheng sofria de paralisia cerebral e morreu sozinho porque o pai estava internado com sintomas do vírus e, apesar de suplicar ajuda para alimentar o filho, não conseguiu. Em Wuhan, o corpo de um idoso ficou horas estirado na calçada em frente a uma loja.

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    Como desdobramento esperado da epidemia, a China está cada vez mais isolada. Muitas companhias aéreas estão cancelando voos para o país. Pelo menos 22 nações adotaram restrições de comércio ou de viagem para lá. Hong Kong, território autônomo da China, fechou onze dos treze pontos de fronteira e impôs quarentena a todos que chegam do continente. O Cazaquistão e a Rússia fecharam suas fronteiras terrestres com o vizinho. Na Indonésia, passageiros vindos da China são obrigados a atravessar um corredor polonês de agentes que lançam neles jatos de desinfetante. Desde o domingo 2, os Estados Unidos estão vetando a entrada no país de estrangeiros que tenham pisado em território chinês nos catorze dias anteriores. “Oferecemos ajuda à China, mas não podemos ter milhares de pessoas vindo para cá e que podem ter o coronavírus. Então, nós vamos barrar”, justificou o próprio presidente americano.

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    CORREDOR POLONÊS – Fila obrigatória: passageiros recebidos com jatos de desinfetante no desembarque na Indonésia (AntaraFoto/Reuters)

    Como resultado incômodo do espraiamento da nova cepa do coronavírus, começou a germinar outro tipo de praga que acompanha a humanidade, de mãos dadas com os vírus: a xenofobia. Sentindo-se alvo de preconceito, depois de ataques e situações constrangedoras, asiáticos residentes na Europa deflagraram nas redes a campanha #EuNãoSouUmVírus. O problema é visível ainda em vizinhos da China, como o Vietnã. A professora de história Madeline Hsu, da Universidade do Texas, conta a VEJA que em muitos lugares dos Estados Unidos as pessoas têm evitado o contato com asiáticos, uma atitude que traz à tona a lembrança das drásticas leis americanas que vetavam a cidadania aos imigrantes chineses, em vigor entre 1790 e 1952. “Há uma longa história aqui de asiáticos vistos essencialmente como estrangeiros sem capacidade de adaptação à cultura local”, explica Madeline.

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    A TOQUE DE CAIXA – Promessa cumprida: a China entrega hospital com 1 000 leitos construído em dez dias (STR/AFP)

    Em Sydney, na Austrália, um homem de origem chinesa sofreu um ataque cardíaco do lado de fora de um restaurante no bairro de Chinatown na terça-feira 4, sem que nenhuma das testemunhas do colapso lhe prestasse assistência por temor de se contaminar. Confundidos com chineses, indivíduos de outras nacionalidades também têm sido vítimas da insensatez. A Embaixada da Coreia do Sul em Berlim disparou à sua comunidade um alerta após uma mulher ter sofrido agressão classificada como xenofóbica pela polícia alemã. “Nossa gente deve ter em mente que eventos similares podem voltar a ocorrer e precisa prestar atenção à segurança pessoal”, dizia a mensagem.

    O preconceito e o péssimo hábito de culpar o doente, e não a doença, são também atalhos para frear a economia. Como sempre acontece quando uma epidemia assola o planeta, há incertezas imediatas. Em alguns casos, a normalidade é retomada rapidamente, em outros não. Com o coronavírus, especialistas já levantam questões de vasto impacto, entre elas o futuro do acordo comercial de Estados Unidos e China. Diante dos efeitos da crise desencadeada pelo 2019-nCoV, as metas resultantes da delicada negociação entre os dois países terão de ser revisadas. “Mesmo os Estados Unidos não conseguirão bater as metas que foram estabelecidas para a importação de bens chineses na primeira fase do acordo. Tudo terá de ser revisto”, afirma o economista Celso Claudio de Hildebrand e Grisi, da Universidade de São Paulo.

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    BIG BROTHER – Fiscalização aérea: drone monitora o uso de máscaras em Wuhan (China Daily/Reuters)

    Com dezesseis cidades em quarentena, algumas delas centros eco­nômi­cos pulsantes como Wuhan, parte da atividade comercial e industrial da China está paralisada. Grandes marcas com operações no território chinês começam a refazer seus planos. A Nike anunciou o fechamento provisório de metade de suas redes de lojas, seguindo os passos da Starbucks, que cerrou as portas de 2 000 cafés. E, como tudo o que acontece na China faz o mundo tremer, as consequências da crise já são sentidas na vizinha Coreia do Sul, onde a fabricante automobilística Hyundai anunciou a paralisação de suas três montadoras por falta de componentes importados da China. Enquanto isso, os cientistas se debruçam sobre o vírus para conhecê-lo melhor e encontrar meios de combatê-lo. É uma corrida que vale vidas.

    Publicado em VEJA de 12 de fevereiro de 2020, edição nº 2673

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