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Conflito no Chile expõe as fragilidades da América do Sul

A crise no próspero país evidencia as mazelas comuns aos vizinhos, que também têm enfrentado chuvas e trovoadas nos últimos tempos

Por Ernesto Neves Atualizado em 18 mar 2021, 20h24 - Publicado em 25 out 2019, 07h00

Considerado uma vitrine de sucesso econômico e razoável bem-estar da América do Sul, o Chile balança com uma crise que estilhaçou a convicção de que tudo ia de vento em popa no esguio território. O aumento no preço da passagem do metrô foi só o estopim (quem nunca ouvir falar disso nas bandas de cá?) de um levante contra o governo que produziu cenas de saques a supermercados, fogo ateado a prédios públicos, caos no aeroporto. Até a quinta-feira 24 o saldo era de dezoito mortos e mais de 300 feridos em confrontos com o Exército, acionado depois de o presidente Sebastián Piñera decretar estado de emergência, com direito a toque de recolher. As tropas na rua causaram arrepios em chilenos que trazem na memória a brutalidade da ditadura de Augusto Pinochet (1973-1990). Com o país em chamas, Piñera voltou atrás no aumento da passagem, mas àquela altura isso era apenas um grão de areia em um mar de insatisfações que inclui custo de vida elevado e falta de acesso a saúde, educação e Previdência. O presidente precisou ceder mais e apresentou um pacote que revê tarifas como a de luz e melhora a renda de aposentados. Mas a ferida exposta pelos protestos não se fechou.

Como o Chile dominava as manchetes, os tremores em outros cantos da América do Sul ficaram em segundo plano, porém não cessaram. O continente dos altos e baixos que nunca decolou anda dando diversas mostras de que suas instituições precisam ser aperfeiçoadas e de que sua economia ainda não se libertou de um gargalo de raízes históricas: a dependência de matérias-primas e a escassez de inovação, problema para o qual chamou atenção o uruguaio Eduardo Galeano (1940-2015), autor do pungente retrato da região descrito no livro As Veias Abertas da América Latina, troféu da esquerda nos anos 1970. Um conjunto de acontecimentos recentes reflete essas arraigadas fragilidades na vida política e econômica tanto dos países hoje à esquerda como dos à direita — caso do próprio Chile (veja o mapa abaixo). “Os países da América Latina são regidos por ciclos semelhantes graças à sua inserção internacional muito parecida”, afirma a cientista política Daniela Campello, da Fundação Getulio Vargas.

Enquanto o Chile entrava em combustão, a vizinha Bolívia era escrutinada pela Organização dos Estados Americanos (OEA), que, chamada a examinar a legitimidade da eleição presidencial, questionou a decisão dos tribunais locais. Eles ungiram o esquerdista Evo Morales pela quarta vez titular do posto, em meio a suspeitas de fraude levantadas pelo opositor à direita, Carlos Mesa. Fato estranho: o segundo turno já havia sido anunciado oficialmente quando a contagem de votos foi interrompida; retomada no dia seguinte, passou a apontar a vitória de Evo. No domingo 27, é a vez de os holofotes se voltarem para a Argentina e a crise em que está afundada, a pior das últimas duas décadas. Se as primárias (que funcionam como um prenúncio do resultado final) se confirmarem, o pleito presidencial deverá tirar o poder do liberal Mauricio Macri e migrá-lo para as mãos, uma vez mais, de peronistas, agora representados por Alberto Fernández e sua vice, a ex-presidente Cristina Kirchner, enrolada em seis processos por corrupção. E as emoções na região não terminam. No Equador, uma insurreição embalada pelo fim do subsídio à gasolina fez com que até a sede do governo fosse transferida. No Peru, o presidente dissolveu o Congresso e três ex­-mandatários foram parar na prisão. E a Venezuela, conduzida pelo ditador Nicolás Maduro, virou o cartão­-postal de um drama humanitário.

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(./.)

Especialistas em América do Sul veem muitos elos nesses enroscos. Um deles é o mau hábito de gastar mais do que se tem, cultivado desde o período colonial. O economista americano Douglass North (1920-2015), dono de um Nobel, observou em seus estudos que, enquanto a América do Sul recebia o DNA das nobrezas perdulárias de Espanha e Portugal, que torravam tudo à vontade, os Estados Unidos herdaram a cultura de uma Inglaterra que, já no século XVII, tinha um Parlamento para autorizar as despesas reais e um banco para auditar as finanças públicas. “Os governos que se acostumaram a gastar de maneira insustentável são os de pior situação atualmente, não importa a orientação ideológica”, diz o diplomata José Botafogo Gonçalves, ministro da Indústria e Comércio no governo FHC e vice-presidente do Centro Brasileiro de Relações Internacionais (CEBRI). Estão no rol Brasil, Argentina e Equador — os dois últimos assombrados de novo pelo fantasma do Fundo Monetário Internacional, o FMI, que já tirou muito o sono dos brasileiros.

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O Chile é uma boa exceção na América do Sul ao pendor para a gastança. Como outros países que fizeram a transição para a democracia dos anos 1980 para cá, tocou reformas que permitiram a estabilização da moeda, reduziu a pobreza e expandiu o mercado de consumo. Mas há, no caso do Chile, diferenças essenciais que ajudam a entender por que ostenta a maior renda per capita da América do Sul (15 300 dólares, em comparação com os 9 800 do Brasil) e pertence há uma década à OCDE, o clube das economias avançadas no qual os brasileiros tanto almejam ingressar. Foi durante a violenta ditadura de Pinochet que o Chile começou a empreender um conjunto de reformas capitaneadas por uma turma conhecida como Chicago Boys, formada na ultraliberal cartilha da Universidade de Chicago. O Estado, normalmente imenso na América do Sul, encolheu — saúde, universidades e Previdência foram privatizadas —, e o país abriu as portas para o comércio internacional. Houve mais. “Ao contrário dos vizinhos, o Chile praticou uma política anticíclica, ou seja, soube economizar quando o dinheiro entrava e teve o que gastar quando escasseava”, explica Botafogo.

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FRAUDE? Morales e protestos contra sua vitória (acima): dúvidas sobre a legitimidade da eleição (Ueslei Marcelino/Reuters)

Os resultados vieram, mas agora cobram seu preço. Nove em cada dez aposentados chilenos recebem o equivalente a 60% do salário mínimo, e a desigualdade de renda, sempre alta, só faz aumentar — os 10% mais ricos ganhavam trinta vezes o que recebiam os 10% mais pobres em 2006; hoje o fosso é de 39 vezes. Esse é o motor da atual insatisfação e um freio importante ao crescimento, como enfatiza um dos maiores entendedores do assunto, o economista francês Thomas Piketty, autor de O Capital no Século XXI. Ele lembra que nações como Coreia do Sul e China floresceram sob patamares de desigualdade bem mais baixos que os da América Latina. Para desatar esse nó, Piketty sugere uma reforma tributária com cobranças progressivas, de modo a tirar o peso sobre a classe média e onerar os mais ricos. O fosso social é um problema da porção mais pobre do continente, campeão no coeficiente de Gini, o medidor da desigualdade: por aqui ele é de 0,5 (em uma escala de zero a 1 na qual quanto maior, pior). Supera até o indicador da África Subsaariana (0,45).

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SUFOCO – Indígenas paralisaram o Equador contra o aumento no preço do combustível: até a sede do governo foi transferida (Ivan Alvarado/Reuters)

Outro obstáculo comum aos países da América do Sul é sua alta dependência das commodities. No Chile, um único produto, o cobre, responde por 25% das exportações; na Venezuela, exemplo extremo, o petróleo atrai 97% das divisas de fora. “Quando o preço das commodities despenca, a economia desses países se ressente, e isso desencadeia as crises políticas”, diz Daniela Campello. Na última década, a porção sul do continente tem sofrido com uma dessas baixas. A vulnerabilidade ao vaivém econômico passa pelo fato de tratar-se de democracias muito jovens, fincadas em instituições em processo de aprendizado e com lideranças pouco representativas. Em geral, os partidos políticos não falam à população, que quando pode se abstém de escolher. No Chile, onde o voto é facultativo, mais da metade dos eleitores preferiu não sair de casa no pleito que guindou Piñera, em 2017. Para terminar de entornar o caldo, a corrupção é ainda endêmica, praga difícil de extirpar. Em entrevista a VEJA, o cientista político Francis Fukuyama, aquele que um dia decretou o fim da história, diz que um dos fatores que contribuem para sua permanência deletéria é a falta de independência do Poder Judiciário em vários países desta região, que precisa virar a página.

Publicado em VEJA de 30 de outubro de 2019, edição nº 2658

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