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Como Taiwan tenta se adaptar ao papel de foco da tensão entre EUA e China

A pequena ilha no Pacífico adquiriu nos últimos tempos a capacidade de, vira e mexe, pôr lenha na fogueira da geopolítica mundial

Por Amanda Péchy, de Taipé
Atualizado em 10 Maio 2024, 13h11 - Publicado em 10 Maio 2024, 06h00

Pequena ilha no Pacífico com área pouco maior que a do estado de Alagoas, Taiwan adquiriu nos últimos tempos a capacidade de, vira e mexe, pôr lenha na fogueira da geopolítica mundial, ao emitir e refletir sinais que alimentam a feroz competição entre Estados Unidos e China pela hegemonia global. Expoente do capitalismo plantado na porta do gigante comunista desde a ascensão de Mao Tsé-tung, há 75 anos, o território desenvolveu com o tempo a habilidade de se posicionar nessa sensível corda bamba. Agora, o cenário mudou: sob o comando do todo-poderoso presidente Xi Jinping, a “reunificação” virou ponto de honra tanto para o governo de Pequim, que anuncia a intenção de estender seu domínio à ilha, quanto para Washington, que promete fazer de tudo para que isso não aconteça.

PREPARO - Academia Kuma: Klaus (sentado, à esq.) ensina táticas de defesa
PREPARO - Academia Kuma: Klaus (sentado, à esq.) ensina táticas de defesa (//Arquivo pessoal)

Quem caminha pelas largas avenidas da capital, Taipé, repletas de gente, arranha-céus, templos, museus, áreas verdes e cafeterias onde se vende o típico e onipresente chá de bolhas, não percebe esse estado de tensão. Os 23 milhões de taiwaneses desfrutam dos melhores sistemas de saúde e educação públicas do mundo, de taxas de criminalidade diminutas (é o terceiro lugar mais seguro do planeta), e têm renda per capita de 34.400 dólares, mais alta do que no Japão, Portugal e Arábia Saudita. “São coisas que não teríamos sob o regime comunista chinês”, diz a arquiteta Ruby Lu Pinham, 25 anos. A pujança é consequência direta de uma peça central na disputa entre China e EUA: a indústria local de semicondutores, que responde por 15% do PIB. Espinha dorsal do mundo interconectado, esse componente, que conduz correntes elétricas na forma de microchips, está presente em todos os cantos do universo eletrônico. E Taiwan, por meio de praticamente uma única empresa, a TSMC, fabrica 60% dos semicondutores do globo e mais de 90% dos modelos mais avançados.

Suprir as indústrias do planeta de microchips essenciais para sua existência criou uma espécie de “escudo de silício” para a pequena ilha, ao garantir aliados no caso de uma invasão chinesa. “Não é apenas problema nosso, é do mundo todo”, disse a VEJA o chanceler taiwanês Jo­seph Wu. Até algum tempo atrás, a dependência dos chips taiwaneses era bem administrada por todas as partes, mas o clima de hostilidade entre Pequim e Washington chacoalhou esse comércio — os Estados Unidos impõem crescentes taxas e sanções ao fornecimento de componentes eletrônicos à China, e Taiwan está cortando laços com seu maior cliente. O dragão asiático direcionou 50 bilhões de dólares à produção local de semicondutores, com o objetivo de atender a 70% da demanda interna até 2025. Os Estados Unidos, por sua vez, aprovaram um aporte de 53 bilhões de dólares para impulsionar a proliferação de fábricas de chip em seu entorno — a própria TSMC está erguendo uma megaplanta no estado do Arizona. “As restrições fizeram Taiwan se afastar dos chineses”, diz Scott Kennedy, pesquisador do Centro de Estudos Estratégicos e Internacionais. No primeiro trimestre deste ano, Washington desbancou Pequim pela primeira vez como principal destino das exportações da ilha, com compras no valor de 26 bilhões de dólares.

PREOCUPAÇÃO - O ex-preso político Fred Chin: contra as ditaduras
PREOCUPAÇÃO - O ex-preso político Fred Chin: contra as ditaduras (Amanda Péchy/VEJA)

Essa mudança de rota comercial na direção dos Estados Unidos se acelerou nos últimos anos, depois que Xi passou a definir a retomada do controle da ilha como “inevitável”. No mesmo período, o número de aviões de guerra chineses que cruzaram a linha divisória não oficial do Estreito de Taiwan quase duplicou, para mais de 1.700. Em paralelo às ameaças, a China ampliou seu Exército a um ritmo alarmante. O país hoje possui a maior Marinha do mundo, com uma força projetada de 400 navios até 2025 (os Estados Unidos têm menos de 300, Taiwan apenas 26), e o arsenal nuclear está se expandindo. “Pequim endurece enquanto Taiwan tenta manter o status quo, a sua existência democrática ambígua”, diz Chin-fu Hung, professor de política da Universidade Nacional Cheng Kung, em Taipé. Até o presidente eleito William Lai, de feroz discurso anti-China, promete evitar mudanças quando assumir o cargo no dia 20.

LIDERANÇA - Fábrica da TSMC: fornecedora da maior parte dos chips consumidos no mundo
LIDERANÇA - Fábrica da TSMC: fornecedora da maior parte dos chips consumidos no mundo (TSMC/Divulgação)

Rebatendo as ameaças de Xi, o presidente Joe Biden já declarou em quatro ocasiões, sem meios-termos, que enviaria soldados americanos para defender Taiwan de uma invasão chinesa — embora seus assessores ressaltem que essa disposição não muda a política da Casa Branca de “ambiguidade estratégica”, pela qual admi­te que o território faz parte da China (só onze países reconhecem Taiwan independente), mas cabe ao governo americano resguardar sua democracia. “Uma invasão chinesa não é inevitável, mas nestes tempos explosivos nada é impossível”, afirmou a VEJA Drew Thompson, ex-conselheiro do Departamento de Defesa americano. A possibilidade mobiliza os taiwaneses. A invasão da Ucrânia pela Rússia, exemplo que a população teme que a China venha a seguir, impulsionou a criação da Academia Kuma, organização sem fins lucrativos que oferece treinamento militar e de defesa a civis. “É vital que as pessoas aprendam a se proteger. Precisamos nos preparar para o pior”, defende Klaus Lee, 36 anos, um dos instrutores da Kuma.

O objetivo da academia é complementar o serviço militar obrigatório, que em 2024 aumentou de quatro meses para um ano. “Tenho medo de um conflito, mas, se acontecer, quero defender nossa liberdade”, afirma o estudante Yating Yi, que, aos 17 anos, aguarda a convocação do Exército. Em Taiwan, os gastos com defesa subiram de 1,8% do PIB, em 2016, para 2,6%, neste ano, o que permitiu, entre outras coisas, a implementação de um sistema antimísseis que prevê oito minutos para a população se abrigar em caso de ataque. A intenção de Taiwan é resistir, muito embora seu Exército de 169 000 homens seja nanico frente aos 2 milhões de soldados chineses.

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ESPERA - Yating, 17 anos (à esq.): aguardando o alistamento, agora ampliado
ESPERA - Yating, 17 anos (à esq.): aguardando o alistamento, agora ampliado (Amanda Péchy/VEJA)

Taiwan, então conhecida como Formosa (nome dado pelos navegadores portugueses), iniciou sua existência separada da China continental quando o general Chiang Kai-shek fugiu para lá ao ser derrotado pelas forças comunistas em 1949. Tornou-se, aos olhos ocidentais, a China “de verdade”, um peão da Guerra Fria com direito a apoio incondicional dos Estados Unidos. Durante quarenta anos, seu partido, o Kuomintang, governou a ilha sob lei marcial, invocando a ameaça comunista para controlar a vida da população com mão de ferro. Pelo menos 140 000 pessoas foram presas durante o chamado “terror branco”, das quais 2 000 acabaram executadas. As primeiras eleições livres só aconteceram em 1996 e de lá para cá o regime se democratizou. “Já vivemos sob uma ditadura. Não podemos achar que nossa liberdade é coisa garantida”, diz Fred Chin Him-San, 75 anos, engenheiro aposentado que passou doze anos preso por suposta ligação com o Partido Comunista Chinês. Novas gerações que não vivenciaram o nacionalismo chinês predominante no passado fazem questão de manter distância do continente: pesquisa do Centro de Estudos Eleitorais da Universidade Nacional de Chengchi revelou que 61% da população da ilha se identifica como taiwaneses, apenas 2,7% como chineses e 32,9% como ambos. Ambiguidade, estratégica ou não, é artigo que vai saindo de moda em Taiwan.

Publicado em VEJA de 10 de maio de 2024, edição nº 2892

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