Já faz tempo que os argentinos, descrentes da capacidade de seus governos de pôr ordem na combalida economia, adotaram o dólar como moeda preferencial. A predileção pelas verdinhas ganhou mais força ainda nos últimos anos, marcados por inflação em alta, dívida externa descontrolada e retração econômica. Neste amargo fim de ano, em que a espiral inflacionária bateu nos 80%, com previsão de chegar a 100% antes do réveillon, a demanda do público é intensa — quase tanto quanto o esforço do Banco Central para manter no cofre as poucas reservas que tem e, se possível, ainda arrecadar algum. A inventiva fórmula implementada pelos economistas de Alberto Fernández para, de um lado, não desvalorizar ainda mais o peso e, de outro, esticar e puxar a corda do câmbio foi criar praticamente uma cotação para cada situação. São atualmente dezessete, cada qual com seu próprio e criativo nome (veja alguns no quadro abaixo).
Um dólar compra atualmente cerca de 170 pesos no mercado oficial e quase 300 no paralelo, que é tecnicamente ilegal, mas usado por todo mundo. A taxa oficial só é aplicada na compra direta no caixa do banco, onde o limite é de 200 dólares por mês. Nas demais transações, adicionam-se à cotação do dia impostos maiores ou menores, dependendo das circunstâncias. Quer trazer uma banda internacional, que cobra cachê em moeda americana? Use o dólar Coldplay, meros 30% mais caros (o governo quer incentivar a inclusão da Argentina nas turnês). Também são de mãe para filho os impostos do dólar tecno, que privilegia empresas de TI dispostas a investir no país. Em outubro, os agricultores indignados com as perdas de receita devido ao peso subvalorizado foram beneficiados com a cotação temporária de um dólar soja. Já para viagens internacionais, muito procuradas nesta véspera de Copa do Mundo, as taxas duplicam o valor do chamado dólar Catar, efeito que se repete no dólar cartão de crédito (para pagar compras feitas no exterior).
Dono de uma agência de marketing e produtor agropecuário com negócios no exterior, Marcelo Miranda, 47 anos, é obrigado a circular diariamente — muito a contragosto — por esse cipoal de cotações. “Uso o blue para guardar e investir, o oficial para contratos de serviço on-line, o dólar cartão para pagar despesas fora, o Netflix para plataformas de streaming”, explica. “Tem de ser muito esperto para não perder dinheiro com essas múltiplas cotações.” O aperto na compra da moeda americana começou no final do mandato de Mauricio Macri, quando a saída de dólares do país, ao ritmo de 10 milhões anuais, impactou as reservas já debilitadas e levou à redução do limite individual mensal de 10 000 para 500 dólares. “A demanda se voltou, então, para o mercado paralelo e o abismo em relação à taxa oficial abriu espaço para o surgimento, agora, dos vários câmbios”, explica o economista Juan Manuel Telechea, diretor do Instituto de Trabajo y Economía (ITE).
O empresário Juan Pablo Casaccione, 57 anos, dono de uma empresa de equipamentos para turismo de bicicleta, que exporta para a Europa e os Estados Unidos, depende de matéria-prima e tecidos importados e, na hora de pagar, apela para o dólar paralelo. “É tanta burocracia para comprar meros 200 dólares nos bancos que prefiro ir direto ao mercado negro”, explica. Um recurso a que muitos que recebem em dólar por contratos no exterior recorrem são as plataformas de criptomoedas, em que não se paga imposto e a taxa de conversão é mais barata. Segundo pesquisa de uma delas, a Rapyd, argentinos e peruanos lideram o ranking latino-americano de uso de agências financeiras digitais.
A um ano da eleição presidencial, o governo argentino funciona em estado de semiparalisação, consequência do conflito aberto entre Fernández e sua vice, a poderosa ex-presidente Cristina Kirchner, pelo domínio das rédeas do país. Os passos na economia são demarcados pelas exigências do FMI, com quem a Argentina tem uma dívida de 44 bilhões de dólares. Nessas condições, pouca esperança há de alguma melhora a curto prazo da periclitante situação política e econômica. Resta à população torcer muito por um bom desempenho na Copa do Mundo.
Publicado em VEJA de 23 de novembro de 2022, edição nº 2816