A escolha do presidente da Câmara dos Deputados dos Estados Unidos é um processo burocrático no qual sempre ganha o líder do partido majoritário, que, antes da votação, conversa e combina o desfecho com os colegas. Isso antes de a direita radical, consolidando um movimento que vinha ensaiando havia tempos, chegar, ver e vencer. Ao longo da semana de abertura dos trabalhos, um grupinho que começou com cinco deputados e se ampliou para vinte — mínima fração dos 435 integrantes da Casa — humilhou o candidato único, o republicano Kevin McCarthy, negando-lhe os votos necessários em catorze chamadas, a primeira vez em um século que a questão não se resolve de primeira. Na 15ª, McCarthy enfim pôde empunhar o sonhado martelo que encerra os debates no plenário, mas aí já havia engolido todos os sapos necessários para assegurar que, daqui para a frente, as grandes decisões passem pelo crivo do bonde dos extremistas, autodenominados “Never Kevins”. A previsão é de muito bate-boca na Câmara eleita em novembro devido ao racha entre 222 republicanos e 212 democratas (uma cadeira democrata está vaga por morte do ocupante).
McCarthy é conservador desde criancinha e trumpista de primeira hora. Verdade que criticou em termos duros a inação de Donald Trump quando a turba de apoiadores do ex-presidente invadiu o Capitólio em Washington, em 6 de janeiro de 2021, a ridícula inspiração para o inaceitável 8 de janeiro de Brasília. O segundo aniversário do episódio americano foi alvo de manifestações em Washington e de pedidos de indiciamento de Trump. Baixada a poeira, McCarthy se redimiu e voltou a se aninhar sob as asas do chefe, que o apoiou em mensagens coalhadas de letras maiúsculas. Fica difícil entender como um pedaço da ala que o próprio Trump instalou no poder agora se desgarra e faz o que fez. Ocorre que para a turma alojada na extrema direita do Partido Republicano, deputados no primeiro ou segundo mandato profundamente desconfiados do “sistema falido” e dos figurões da legenda, McCarthy é pragmático demais, capaz de conchavos com os democratas que o grupo considera inaceitáveis. Mais do que discutir projetos, os radicais querem mesmo é ver o circo pegar fogo, sacudir o Legislativo e se impor como a nova face do poder em Washington.
Na ânsia de se eleger, McCarthy acatou todas as exigências do bloco anti-establishment, inclusive a que determina que basta o pedido de um único deputado (e não da maioria da bancada, como é hoje) para que se abra um processo de destituição do presidente da Câmara — um retumbante tiro no próprio pé. O novo pacote de regras impede que a liderança partidária pressione por candidatos moderados nos distritos eleitorais seguramente republicanos, como tem feito. Outro compromisso assumido por McCarthy foi o de bloquear qualquer aumento de gasto do governo sem a contrapartida de cortes em outras áreas, o que pode arrastar a discussão de projetos federais e concretizar as temidas paralisações de serviços públicos por falta de verba, geralmente evitadas por acordos de última hora. A extrema direita ganhou ainda a garantia de que terá maior participação em comissões críticas, como aquelas que podem reabrir as investigações sobre práticas duvidosas de Hunter Biden, o filho-problema do presidente. Outra promessa do novo speaker já foi cumprida: os republicanos votaram em peso a favor da criação de um comitê para averiguar indícios de perseguição dos conservadores por agências federais (leia-se FBI).
Comparados por colegas republicanos a “terroristas legislativos” e até ao Talibã, os extremistas da direita se alojam no Freedom Caucus, uma espécie de clube formado dentro da Câmara por cerca de cinquenta republicanos que, tirando proveito da maioria apertada, esperam controlar as futuras decisões. Seus membros defendem muitas pautas comuns ao conservadorismo, como encolher o governo, proibir o aborto e conter a entrada de imigrantes. A diferença é que eles estão dispostos a tudo, inclusive fazer o Legislativo de refém, como ocorreu na votação de McCarthy. “O que realmente lhes interessa é o caos”, diz Charles Cameron, professor de política da Universidade de Princeton. “Seu modus operandi está mais para afundar projetos de lei do que aprová-los.” Trump foi rápido em se vangloriar pela eleição de McCarthy, mas o fato é que seu controle a ferro e fogo do Partido Republicano, já questionado quando se viu que a “onda vermelha” (a cor da legenda) prometida nas eleições de meio de mandato não passou de uma marola, ficou ainda mais abalado após a humilhação do “meu Kevin”, como gosta de falar. Na briga de republicano contra republicano, está sobrando para todo mundo.
Publicado em VEJA de 18 de janeiro de 2023, edição nº 2824