Carta ao Leitor: A paz quente
O jogo geopolítico está muito mais complicado do que em décadas passadas, embora aparentemente menos belicoso
Era o precipício da humanidade. Às 19h de 22 de outubro de 1962, o presidente americano John Kennedy foi à televisão para anunciar que os soviéticos haviam instalado mísseis nucleares em Cuba. O impasse durou treze dias, ao fim dos quais as duas superpotências inimigas — os Estados Unidos e a União Soviética — conseguiram contornar os chamados às armas. Kennedy e o mandachuva vermelho, Nikita Kruschev, selaram a trégua passageira. O conflito nuclear fora freado no momento mais dramático da Guerra Fria. O fosso que brotara ao fim da II Guerra, com o mundo rachado ao meio, chegara ao dramático apogeu — e assim permaneceria ao longo de três décadas.
A cortina de ferro só seria levantada em 1989, com a queda do Muro de Berlim e, depois, em 1991, com a derrocada da União Soviética. A Guerra Fria — tema de sucessivas reportagens de capa de VEJA — parecia ter cessado. Era “o fim da história”, na definição do cientista político americano Francis Fukuyama. Mas não. Veio o choque de civilizações entre o Ocidente e o Oriente, embebido de estúpido fundamentalismo, cujo ápice foram os infames atentados de 11 de setembro, e o renascer da Guerra Fria, agora no modelo 2.0, uma versão de embalagem geopolítica mais complexa, em razão dos movimentos menos previsíveis que se dão sobre o tabuleiro global. Já não se trata de embate sobejamente ideológico, com o planeta rachado ao meio, a um só tempo simples e agressivo. Agora, o confronto tem fundo especialmente econômico, apesar das diferenças políticas — e no quebra-cabeça de infinitas peças as bordas são imprecisas. Os Estados Unidos conversam com a China comunista porque se trata de fazer andar as trocas comerciais. A Rússia de Putin, agressora da Ucrânia, é aceita em tapetes vermelhos porque tem gás e grãos, além de influência.
Parece não haver dúvida: o jogo está muito mais complicado do que em décadas passadas, embora aparentemente menos belicoso. É a paz quente. Países como o Brasil, afeitos a conversar com todos os lados — Lula deixou Cuba e embarcou para Nova York, não briga com Putin e sentou-se com Zelensky —, teriam uma excelente janela de oportunidade, não fosse a postura indecisa, muitas vezes de visão estreita, sem saber para onde ir e a quem dar as mãos de modo sincero. Reportagem da edição mergulha com minúcia na diplomacia multipolarizada de nosso tempo. VEJA espera cumprir, com clareza e didatismo, uma de suas missões centrais: a de iluminar os corredores obscuros da civilização, que às vezes parecem estar à beira de uma falésia, como no tempo de Kennedy e Kruschev. Mas há sempre uma saída de modo a evitar o caminho intuído pelo general prussiano Carl von Clausewitz (1780-1831): “A guerra é a continuação da política por outros meios”. Não pode — e não precisa — ser assim.
Publicado em VEJA de 22 de setembro de 2023, edição nº 2860