Pelo menos uma boa notícia para o atribulado presidente do Chile, Sebastián Piñera: ele se livrou de duas ações de impeachment que pesavam sobre sua cabeça. Na terça-feira 16, o Senado rejeitou os dois processos, ambos relativos a informações sobre Piñera, um dos homens mais ricos do país, contidas nos Pandora Papers, um conjunto de documentos reveladores sobre os recursos dos muito ricos do mundo (alguns deles para fugir do pagamento de impostos por meio de contas e empresas em paraísos fiscais). Nem por isso o presidente pode respirar aliviado. Com a própria popularidade em ruínas, mais de 60% dos chilenos eram a favor do impedimento, ele viu seu candidato também desmoronar nas pesquisas de intenção de votos para a eleição de domingo 21. Nelas, o primeiro e o segundo lugares eram de dois outsiders do tipo que anuncia ser contra “tudo isso que está aí” — mais uma prova de que os chilenos estão fartos dos políticos tradicionais.
A eleição presidencial e parlamentar de domingo será a primeira desde a revolta popular que estremeceu o Chile de ponta a ponta ao longo de 2019 e começo de 2020 (só foi contida pela pandemia), com protestos diários nas ruas contra, principalmente, o desnível social solidificado durante décadas por uma Constituição dos tempos de Augusto Pinochet. A inação, tanto do Executivo quanto do Legislativo, para reduzir a desigualdade minou de vez o já abalado prestígio dos políticos tradicionais — a questão é que a emenda pode sair pior que o soneto. O espaço aberto pela insatisfação geral está sendo ocupado por partidos nanicos. O primeiro colocado nas pesquisas, com 25%, é Antonio Kast, ex-deputado que concorre pela coalizão Pulso Ciudadano, de extrema direita. Dado a arroubos verborrágicos comparáveis aos de Donald Trump, Kast defende a construção de valas na fronteira para impedir a entrada de imigrantes venezuelanos e tece elogios ao ditador Pinochet. Em segundo, com 19%, aparece o barbudo Gabriel Boric, 35 anos, ex-líder estudantil, agora deputado constituinte, que se candidata pela Convergência Social, de esquerda. Boric é ferrenho defensor da taxação das grandes fortunas, que, segundo ele, geraria recursos equivalentes a 4% do PIB. “A mediocridade de nossos líderes levou a uma degradação do debate nacional”, diz Marta Lagos, economista da consultoria especializada em política Latinobarómetro.
Enquanto a Constituinte fez emergir uma nova geração de representantes da centro-esquerda, favorável à ampliação de serviços básicos como saúde e previdência social, as pesquisas mostram agora um movimento inverso na direção da direita, que os especialistas atribuem, em parte, à reticência da classe média diante da violência dos protestos de rua, e, em parte, aos efeitos da grande massa de imigrantes venezuelanos que chega ao país. “A sensação de anarquia costuma beneficiar aqueles que se apresentam como defensores da ordem”, diz Mauricio Morales, analista político da Universidade de Talca. De agosto para cá, enquanto o apoio a Kast triplicou, o candidato de Piñera, o xará Sebastián Sichel, caiu de 24% para 8%. De qualquer forma, prevê- se que o comparecimento às urnas — que não passou de 43% na Constituinte em maio — seja pequeno novamente, e ao que tudo indica os dois mais votados irão para o segundo turno em dezembro.
Do outro lado da Cordilheira dos Andes, a insatisfação também deu o tom nas eleições na Argentina de parte do Legislativo. O presidente Alberto Fernández perdeu o controle do Senado e amargou a maior derrota de um governo peronista desde a volta da democracia, em 1983 (podia ter sido pior: por pouco não perdeu a Câmara). Também foi histórica a baixa participação — 71% — do combativo eleitorado argentino. De novo, aí um outsider aproveitou o vácuo: Javier Milei, misto de economista, radialista e comediante, elegeu a si mesmo e mais quatro candidatos de sua coalizão de extrema direita, que, com 17% dos votos, se tornou a terceira força política do país. Líder de um movimento “liberal libertário”, o “Bolsonaro argentino” já avisou que vai disputar a Presidência em 2023. O resultado das urnas, acima de tudo, foi uma clara mensagem de desagrado da população com o atroz desempenho da economia. Em outubro, a inflação passou de 42%, só perdendo no continente para a insolvente Venezuela. Mais de 40% dos 45 milhões de argentinos estão na pobreza e o desemprego bate em 10%. Na Argentina, como no Chile e em boa parte da América do Sul, a população dá mostras de que não aguenta mais. O problema é na hora de escolher quem vai resolver a situação. Em geral, acabam optando mal.
Publicado em VEJA de 24 de novembro de 2021, edição nº 2765