O Canadá deu o primeiro passo oficial para se tornar o segundo país do mundo a legalizar a maconha nacionalmente, quatro anos após o Uruguai. Na quinta-feira, um projeto de lei elaborado pelo governo federal foi entregue ao Parlamento que, nos próximos meses, deve regulamentar o comércio e permitir que a droga seja consumida livremente no país – em julho de 2018, se seguir planos do Partido Liberal.
As circunstâncias da nação do badalado primeiro-ministro Justin Trudeau, porém, estão longe de serem as mesmas do precursor latino-americano. À primeira vista, o objetivo da liberação parece até um contrassenso: dificultar que a droga chegue aos jovens. As controvérsias, sim, existem, mas a população demonstrou estar disposta a embarcar na proposta do premiê quando o elegeu em 2015, com a promessa de legalizar a Cannabis.
A preocupação de Trudeau com a droga não é em vão, muito menos exagerada: o Canadá é o quarto país do mundo no consumo de maconha, apesar de o uso recreativo ser completamente ilegal (o Brasil fica em 17º lugar). De acordo com o último levantamento de Tabaco, Álcool e Drogas do governo, de 2015, 11% dos canadenses haviam usado a erva no ano anterior – entre os jovens de 20 a 24 anos, o índice chega a 30%, o maior entre países desenvolvidos. Por ser tão comum, a posse da Cannabis representa mais da metade de todas os ofensas relacionadas a drogas, um peso para os cofres do Estado.
O premiê moderno é, sim, mais liberal sobre os efeitos da droga que colegas conservadores: admite publicamente ter usado “cinco ou seis vezes na vida”. Ainda assim, faz questão de ressaltar em discursos que “não importa o que se diga sobre a maconha em comparação ao álcool ou ao cigarro, o impacto no desenvolvimento do cérebro existe e precisa ser prevenido”. Na visão de seu partido, a legalização pode, inclusive, ajudar na discussão aberta sobre os malefícios da droga, pois virá acompanhada de programas de conscientização.
Apesar de inevitavelmente polêmica, a plataforma de Trudeau tende a passar no Parlamento sem grandes dificuldades, com uma Câmara controlada pelos liberais e aprovação pública bastante impressionante, se comparada ao Uruguai. Uma pesquisa divulgada neste mês pelo grupo canadense NRG mostra que 51% da população concorda com a legalização, enquanto 33% é contra (14% não tem posição definida). Quando José Mujica anunciou a medida em seu país, duas a cada três pessoas se opunham. “No Uruguai, foi mais um decreto que um consenso”, diz o inglês Steve Moore, diretor do centro de estudos Volteface, especializado em políticas sobre drogas. “Quando Trudeau é questionado se a regulamentação vai gerar dólares, até evita esse tópico. Insistir que faz isso pelos jovens popularizou a medida.”
Qual é o plano?
A proposta progressista começou a sair do papel em junho do ano passado, quando o governo formou uma força-tarefa para elaborar um relatório com oitenta diretrizes sobre o processo de legalização. O documento pode ser resumido no lema da administração de Trudeau, “Legalizar, regulamentar e restringir acesso”, e se baseia pouquíssimo em exemplos estrangeiros. As justificativas focam o contexto canadense, como leis que já regulam o álcool e o cigarro, e o passado bem-sucedido em derrubar os índices de consumo de tabaco.
Os detalhes serão debatidos ao longo dos próximos meses, mas já dá para se ter ideia de como funcionará o mercado. Licenças serão emitidas para negócios privados cultivarem, distribuírem e venderem. “O governo canadense, em nível federal, vai licenciar organizações para produzirem a Cannabis, enquanto a distribuição ficará a cargo de províncias e territórios”, explica Moore.
Das diretrizes propostas pelo grupo de estudo, algumas terão espaço certo na lei:
- Idade mínima para consumo de 18 anos, com permissão para que províncias e territórios a elevem;
- Permissão para plantio de até quatro plantas de maconha por casa;
- Regras rígidas para publicidade e embalagem, semelhantes às do tabaco e do álcool;
- Criação de programas para conscientizar a população sobre riscos.
O desafio de Trudeau, que põe em jogo sua popularidade e carreira se falhar, é acabar com o mercado negro e, de fato, evitar o acesso dos jovens. O exemplo uruguaio não é de grande ajuda, por ser predominantemente estatal, e o americano ainda menos, por funcionar regionalmente. Segundo W.A. Bogart, professor da Universidade de Windsor, no Canadá, e autor do livro Fora das Ruas: Legalizando Drogas, o mercado ilegal não terá fim imediato, mas é difícil que se mantenha apenas para fornecer drogas aos menores de idade. “O exemplo do álcool mostra que poucos produzem ilegalmente se há mercado legal”, diz Bogart.
Outro problema diz respeito ao controle regional, já que cada província terá responsabilidade de fiscalizar a distribuição e, portanto, evitar que chegue aos mais novos. “Ontário tem sistema de monopólio do álcool e seus negócios são vergonhosos ao coibir o consumo, porque visam a maximizar o lucro”, diz Mark Kleiman, professor de política pública da NYU e ex-consultor do estado americano de Washington na legalização.
Mercado em alta
Pode não ser o foco (pelo menos, abertamente), mas os cofres do governo esperam ver o retorno financeiro. Entre os produtores, a legalização é motivo de euforia e esquenta um mercado que já é forte devido ao uso medicinal, permitido desde 2001. Em relatório publicado pelo jornal Toronto Star, a auditoria Deloitte estima que, após julho de 2018, nasça uma indústria de 22,6 bilhões de dólares (69,9 bilhões de reais).Trudeau sugere que, com a liberação total, o dinheiro de impostos seja destinado a tratamentos para viciados em drogas e programas educacionais.
Já são 43 empresas no Canadá com permissão para cultivo e comercialização da Cannabis medicinal e é natural que dominem o novo mercado recreativo. A líder, Canopy Growth Corp., teve as ações valorizadas em 11% desde o anúncio da legalização, no fim de março, e foi a primeira do ramo a ultrapassar o valor de 1 bilhão de dólares. Outros nomes, como a OrganiGram Holdings Inc. e a Aurora Cannabis Inc., cresceram respectivamente 10% e 6,5%.
Se o processo funcionar, o Canadá poderá colher os frutos de ser pioneiro em um negócio global, com a fortuna de estar à frente dos Estados Unidos. Apesar de ter começado mais cedo com legalizações regionais, a proibição federal restringe e muito o mercado americano.
Sob os olhos do mundo
Seja no comércio ou no âmbito legal, não há modelo garantido, e o país de Trudeau precisará trabalhar na tentativa e erro, com as dificuldades que surgem com qualquer política sem precedentes. O resto do globo observará atentamente os passos da nação moderninha, que vai se tornar exemplo de sucesso, ou fracasso.
A tendência mundial é difícil de ser medida, mas é inegável que a liberação gradual está em curso, com relaxamento de penas e níveis diferentes de descriminalização, garantem especialistas. No fim de março, o Senado argentino aprovou o uso medicinal da Cannabis, que também entrou em vigor nesse mês na Alemanha, e na Irlanda e na Austrália, no ano passado. Nas eleições americanas de 2016, nove estados votaram algum tipo de regra sobre a erva. Dos cinco que avaliaram o uso recreativo, apenas um rejeitou a liberação (Arizona, com 51% de votos contrários).
O que difere o Canadá é ir contra a onda global de descriminalizar, menos polêmica e bem mais fácil de ser posta em prática, e pular direto para a versão mais drástica. Trudeau faz questão de estar contra o mundo: não quer deixar a droga nas mãos do tráfico, que só pode ser coibido com a regulamentação do governo – só o tempo provará se foi descuidado ou visionário.
Confira o que dizem as leis sobre a maconha no mundo:
Descriminalizada
É quando o ato deixa de ser crime perante a lei, ou seja, o usuário não responde a processo criminal. Nesses casos, ainda é possível que receba sanções administrativas (como são as multas de trânsito), sem ser fichado pela polícia, explica o advogado criminalista Renato Marques Martins, diretor do Instituto de Defesa do Direito de Defesa.
Em Portugal, onde o porte de todas as drogas para uso pessoal é descriminalizado, o usuário pode ser encaminhado para cursos dependência química ou até internação. Uma diferença-chave está na venda: a descriminalização da droga diz respeito apenas à demanda, assim, o tráfico ainda é ilegal e o comércio não é regulado pelo governo.
Legalizada
É a categoria que se aplica apenas ao Uruguai, a alguns estados americanos e, em breve, ao Canadá. Quando a droga é legalizada, não há nenhuma consequência jurídica para os usuários ou produtores que seguem as diretrizes impostas pelo governo. A legalização aborda tanto o consumo quanto a oferta, assim como funciona com o álcool ou o tabaco. A lei regula o mercado de produção e venda e impõe limites sobre locais para consumo ou outras restrições, como a idade mínima.
Ilegal
Quando o consumo da maconha é ilegal, o usuário responde a processo criminal pelo seu ato – o que não significa que será preso. No Brasil, que está nessa categoria, a lei determina penas mais brandas para usuários, como serviços comunitários, e mais pesadas para tráfico, que leva à cadeia.