A Câmara dos Deputados da Argentina aprovou nesta quinta-feira (14) a legalização do aborto, após 20 horas de discussão, divulgou a imprensa do país. Foram 129 votos a favor, contra 125 contra e uma abstenção.
O placar variou durante todo o período da votação. Durante esta madrugada esforços foram feitos para convencer ao menos dois deputados a mudarem seus votos e aprovarem a lei. Por volta das 8h da manhã desta quinta-feira, o deputado peronista Sergio Zillioto confirmou que seu voto mais os de dois colegas indecisos dariam margem para a vitória da legalização.
Desde quarta-feira (13) pela manhã a votação polarizava o país: de um lado um mar de lenços verdes, inspirados pelos lenços símbolo do movimento Mães da Praça de Maio, que defendem o direito à assistência médica às milhares de mulheres que abortam no país todos os anos. Do outro lado da praça, em frente ao Congresso, aqueles que optaram por defender “as duas vidas” e que entendem que a legalização do aborto seja um atentado contra os direitos humanos.
“Nós viemos aqui porque os abortos existem, queira ou não queira. Não é uma questão moral, é preciso legalizar para que as mulheres deixem de abortar em condições indignas. Para que possam ter apoio após o aborto, tanto psicológico, como médico, que possam recorrer a um hospital sem que a julguem”, justifica a estudante Mora Calderón de apenas 19 anos. Nem mesmo o frio de 7 graus amedrontou as milhares de mulheres que circularam pela Praça do Congresso durante a jornada de horas. “O aborto já acontece, é algo que existe”, pontua Florencia Perez ao explicar porque veio da cidade de La Plata para participar da vigília. “Aqui não estamos falando de aborto sim ou aborto não. É uma questão de discutir se as pessoas tem o poder de decidir sobre o seu corpo”, completa sua companheira de militância Rocio Morroni .
Surgimento do projeto de Lei
O movimento pró-aborto já vinha ganhando maior visibilidade desde as marchas contra a violência masculina do movimento Ni Una Menos, em 2015. Contudo, um discurso do presidente Maurício Macri ao abrir o ano legislativo em fevereiro, no qual disse que ainda que seja “Pró-vida”, ele não se oporia à inclusão do tema na agenda dos legisladores, foi o empurrão que faltava para a votação ser realizada.
O projeto de lei de interrupção voluntária da gravidez chegou ao Congresso em março deste ano pelas mãos do movimento Campanha pelo Aborto Legal, Seguro e Gratuito, encabeçado pelas deputadas Victoria Donda (Libres del Sur), Brenda Austin (Unión Civica Radical), Mónica Macha (do Kirchnerista, Frente para la Victória) e Romina del Pla (Frente de Izquierda). A proposta apresentada pretende convencer os legisladores de que, para além das crenças pessoais de cada um, é dever do Estado garantir o acesso ao atendimento adequado àquelas mulheres que optem pela interrupção da gravidez até a 14ª semana de gestação, e que lhes seja garantida a assistência por equipes de saúde preparadas a prestar o serviço, tanto na rede pública quanto na privada.
Tiveram início, então, dois meses de moções públicas, das quais participaram um sem fim de personagens da sociedade civil argentina escolhidos pelos legisladores para defender suas posições. O país deixou de lado, pelo menos duas vezes por semana, discussões sobre futebol e mesmo a iminente recessão decorrente da alta do dólar, para colocar o foco no direito da mulher em decidir sobre seu próprio corpo e questões de base filosófica, como o momento exato do início da vida humana.
O governo foi acusado de colocar o aborto em pauta para tentar desviar o foco da crise econômica. Porém, esta é a primeira vez que um projeto de lei sobre o assunto chega tão longe e alcança, segundo pesquisas recentes, um nível de aprovação de cerca de 52% da opinião pública.
A história, no entanto, não se encerra hoje. Mesmo com a aprovação da Câmara, a lei ainda terá de passar por votação no Senado, onde o panorama é mais complexo: apenas 18 dos 72 senadores se dizem favoráveis à proposta.
O argumento dos que defendem a interrupção voluntária da gravidez se baseia no direito de entre 370 e 522 mil mulheres –segundo dados do Ministério da Saúde local– que abortam anualmente na Argentina. Para elas o Estado tem a obrigação de garantir “educação sexual para decidir, anticoncepcionais para não abortar e aborto legal para não morrer” com o objetivo de diminuir as taxas de mulheres hospitalizadas por complicações em decorrência de abortos clandestinos: em 2017 foram cerca de 10 mil, com 63 mortes contabilizadas.
Um dos ponto levantados por legisladores favoráveis à lei é que a maioria dessas mulheres provém das classes economicamente mais desfavorecidas e não contam com os recursos necessários para pagar pelo acompanhamento de uma clínica clandestina de aborto como as jovens de classe média e alta.
Por outro lado, aqueles contrários à aprovação da lei, como a vice-presidente, Gabriela Michetti, alegam serem a favor de que se mantenham as duas vidas, tanto a da gestante, quanto a do feto em formação. A solução para as mulheres que não desejam ser mães seria colocar seus futuros bebês para adoção.
Apesar de não ser permitido, o código penal argentino não prevê punição ao aborto desde 1921 caso a gravidez represente “um perigo de vida para a mãe e esse perigo não possa ser evitado por outros meios” e quando ela é resultante de “estupro ou atentado ao pudor cometido contra uma mulher ‘idiota ou demente’”.
Caso a lei seja aprovada pelo Senado e sancionada por Macri, a Argentina será um dos poucos países da América Latina a descriminalizar a prática, ao lado de Cuba, onde a interrupção da gravidez é legal desde 1968 até a oitava semana de gestação, e do Uruguai que aprovou lei em 2012 legalizando a interrupção da gestação até a 12ª semana.
(Carolina Marins contribuiu de São Paulo com a reportagem)