Faltando pouco para o último dia da transição para uma União Europeia (UE) sem Reino Unido, 31 de dezembro de 2020, o Brexit, aprovado em plebiscito em meados de 2016, chega à reta final do jeito que começou — confuso e com pontos importantes a definir. O anúncio do acordo definitivo, que deveria ter sido feito na reunião do Conselho Europeu na quinta-feira 10 — para dar tempo de os Parlamentos dos dois lados discutirem e aprovarem suas cláusulas —, foi adiado para o domingo seguinte e, agora, ficou em aberto: até o fim do ano, qualquer dia é dia. “O mais provável neste momento é que as negociações resultem em fracasso”, disse o primeiro-ministro britânico Boris Johnson, após mais de uma hora de conversa por telefone com a presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen.
No mar de idas e vindas em que o Brexit navega, o tom de honesta franqueza soou como mais uma jogada do descabelado primeiro-ministro para acentuar sua postura dura, enquanto, nos bastidores, todos continuam tentando costurar compromissos. Da parte da UE, a orientação é “seguir com as tratativas” — mas, pelo sim, pelo não, o bloco divulgou um plano de contingência para reduzir o impacto na interrupção de cadeias de suprimento, no caso de o ano acabar sem acordo. “É impressionante que, depois de tanto tempo, os dois lados continuem paralisados”, diz Alan Winters, do Observatório de Política Comercial da Universidade de Sussex.
A incerteza tem impacto no dia a dia dos britânicos. Temendo uma escassez de produtos vindos dos ex-parceiros da UE, a Tesco, principal rede de supermercados do Reino Unido, está estocando alimentos não perecíveis em armazéns espalhados pelo país e racionando itens, para evitar uma corrida às lojas. A possibilidade de que a falta de acordo obrigue o comércio entre os dois países a se submeter às regras da Organização Mundial do Comércio (OMC), que não admite descontos e privilégios (a não ser, justamente, quando as duas partes firmam um pacto bilateral), impulsiona o temor de aumento da inflação: a previsão é de uma alta imediata de 5% no preço da cesta básica. Pesquisa da London School of Economics mostra que o queijo roquefort importado da França, por exemplo, ficaria 55% mais caro.
Outra questão são as viagens de fim de ano (se a pandemia deixar, evidentemente): um inglês corre risco de não poder desembarcar no território da UE, que só permite turismo dentro do bloco, ou, pior ainda, viajar para o continente em 2020 e não poder voltar para casa em 2021, por falta de regras definidas na imigração. “O impasse no setor turístico é um dos exemplos de como o Brexit vem travando a atividade econômica”, afirma Paul Charles, da consultoria especializada em turismo PC Agency, de Londres. Nestes últimos dias disponíveis para evitar o apocalipse do no deal, dois pontos estão pegando. Um é concreto e efetivamente complicado: alcançar o que está sendo chamado de level playing field, ou campo nivelado, que consiste no compromisso dos britânicos de não contrapor suas regras às que vigoram na UE — em um exemplo simplista, não exportar para o continente um carro que foi fabricado com impostos, direitos trabalhistas e índices de poluição menos rígidos do que os existentes no bloco e poder ser vendido mais barato por causa disso.
O outro trata de uma atividade quase irrelevante nas economias envolvidas, mas sensível em matéria de orgulho nacional: quanto do valor de um peixe pescado por franceses em águas britânicas deve permanecer no Reino Unido? Sobre tudo isso paira o enrosco da circulação entre a Irlanda do Norte, território britânico que saiu da UE, e a Irlanda, que continua lá — um compromisso alcançado a duras penas que vira e mexe volta à corda bamba. Aos negociadores, resta a lembrança da velha canção: “Ai, ai, ai, ai. Está chegando a hora…”.
Publicado em VEJA de 23 de dezembro de 2020, edição nº 2718