Avanço da direita radical sacode Europa e impõe desafios a governos da UE
O bom desempenho do grupo na eleição do Parlamento Europeu era esperado, mas sua dimensão expôs o tamanho da insatisfação popular com os atuais líderes
Arquitetada depois da devastação imposta pela Segunda Guerra e concretizada em 1992, a União Europeia (UE) encarna desde seu nascimento um conjunto de princípios e regras formulado para banir da sociedade, repousada em um confortável colchão social, as manchas da intolerância, da truculência e do autoritarismo. O bloco, hoje com 27 países, tem como base o regime democrático, calcado em instituições fortes e independentes. Na economia, empreendeu reformas capazes de aliar crescimento com inclusão e proteção social. Ao admitir novos membros e direcionar a eles bilhões de euros, elevou o padrão de vida de países como Portugal e Polônia. Funcionou por um bom tempo, mas nos últimos anos, com a situação econômica fazendo água, uma nuvem de insatisfação popular cada vez mais densa se espalhou sobre a UE, até desabar sobre a eleição para o Parlamento Europeu: no domingo 9, a direita radical, um ninho de preconceitos e extremismo, saiu de vez do limbo político e elegeu um número nunca visto de deputados.
O resultado foi particularmente dramático na França, onde os candidatos do Renascimento, partido do governo, levaram tal surra que o presidente Emmanuel Macron, em decisão cercada de controvérsia, decidiu dissolver a Assembleia Nacional. Na contagem final, a chapa do partido governista ficou com 15,1% dos votos, contra 34,4% do Reagrupamento Nacional, de Marine Le Pen, um sobrenome abominado até algum tempo atrás pela carga de antissemitismo e racismo que carregava e que ela foi suavizando ao entregar a presidência (embora continue dando as cartas) e a cabeça da chapa a Jordan Bardella, político carismático e boa-pinta de 28 anos. “Não posso fingir que nada aconteceu”, justificou Macron, ao convocar eleições para 30 de junho, com segundo turno em 7 de julho — duas semanas antes do início da Olimpíada de Paris. “Fiquei chocada. A dissolução pouco antes dos Jogos é extremamente perturbadora”, desabafou a prefeita da capital, Anne Hidalgo.
A interpretação geral é que Macron, ciente de que votar para o distante Parlamento Europeu é diferente de votar dentro de casa, quer unir a população em torno da rejeição a Le Pen — fórmula com que a derrotou em duas eleições. Trata-se de uma aposta arriscadíssima que pode, se a ultradireita repetir a façanha, obrigá-lo a conviver com um primeiro-ministro intragável, e o nome mais provável é justamente o de Bardella.
Com sede em Estrasburgo, na França, o Parlamento Europeu abriga políticos de todos os matizes, reunidos em blocos que brigam, esperneiam, mas no fim se acomodam e aprovam as decisões da Comissão Europeia, o órgão executivo da UE. Nestas eleições, a coalizão Partido Popular Europeu (PPE), de centro-direita (na nova conjuntura, mais centro do que direita), continuou majoritária, arrebanhando 189 das 720 cadeiras. Unindo-se à Aliança Progressista dos Socialistas e Democratas (S&D), que ficou em segundo, e a outras legendas menores, o PPE continuará tendo maioria de cerca de 400 deputados. Parece confortável, mas não é. Impulsionada pela conquista de um quarto do Parlamento e do primeiro ou segundo lugar em nove países (veja o mapa na), a direita radical certamente vai buscar impor sua voz.
Esse extremo do leque político está representado em dois blocos que, por enquanto, não se bicam, mas já falam em se unir: o Identidade e Democracia (ID), que ganhou 58 cadeiras, e o Conservadores e Reformistas Europeus (ECR), que obteve 73. O primeiro é comandado pela francesa Le Pen, e o segundo, pela primeira-ministra italiana Giorgia Meloni — o que instala duas mulheres na linha de frente da virada à direita da Europa.
Le Pen é velha conhecida dos eleitores, mas com roupagem renovada: varreu para debaixo do tapete assuntos desagradáveis, como o antissemitismo e o encanto por Vladimir Putin, e, em um golpe de mestre, convocou o jovem Bardella, ele próprio filho de imigrantes italianos (assimilados pela cultura francesa, o que, segundo ele, faz toda a diferença), para ser a cara nova do partido. A italiana Meloni, ao contrário, é uma nova estrela em plena ascensão. Habilidosa e pragmática, firmemente pró-Ucrânia, aproximou-se de Ursula von der Leyen, presidente da poderosa Comissão Europeia, e se solidificou no comando de um país que parecia ingovernável — seu partido, o neofascista Irmãos da Itália (hoje devidamente domado pelas circunstâncias), fez a maioria dos deputados italianos no Parlamento Europeu. Missão cumprida, Meloni se prepara para brilhar no palco do G7, com reunião marcada para 13 a 15 de junho em Borgo Egnazia, um resort de luxo no salto da bota italiana. “O futuro da Europa está nas mãos dessas mulheres”, diz Kai Enno Lehmann, professor de relações internacionais da USP.
Sacudida, ela também, pelos ventos direitistas, a Alemanha viu a ultrarradical Alternativa para a Alemanha (AfD) conquistar 15% dos votos e se tornar a segunda maior bancada alemã no Parlamento Europeu. “A legenda surfa no profundo ressentimento com o governo, especialmente no leste do país, onde a classe média baixa se sente deixada para trás pelas elites”, afirma o historiador Vinícius Bivar, da Freie Universität. A AfD é acompanhada de perto pela polícia alemã, por seu extremismo e relativização do regime nazista, e recentemente foi removida do bloco de Le Pen no Parlamento Europeu quando um de seus deputados declarou que a SS, a polícia de Hitler, não era “necessariamente criminosa”. Por mais que procure se afastar desse tipo de barbaridade e embalar a xenofobia em uma aura de nacionalismo e antiviolência, a ultradireita repaginada de Le Pen, Meloni e companhia continua sendo ultradireita — aquela que cultua a pátria e a “família cristã”, quer proibir o aborto e persegue homossexuais, entre outros retrocessos.
A opção pela direita radical na Europa tem como combustível mais inflamável a crise migratória, problema que se amplifica nas redes sociais, atiçando o sentimento contra, principalmente, muçulmanos vindos do norte da África e do Oriente Médio. “Nossa civilização pode morrer porque será afogada por imigrantes que vão mudar irreversivelmente nossos costumes, nossa cultura e nosso modo de vida”, proclamou o francês Bardella em campanha. Mas também contribuem para a insatisfação do eleitorado as novas regulamentações para combater a crise climática, que exige mudanças drásticas na agricultura, e a falta de oportunidades. A Europa não cresce com vigor há mais de uma década e foi ultrapassada pela China, pelos Estados Unidos e por nações emergentes na acirrada briga pelos mercados globais.
Na virada do século XXI, época de ouro da União Europeia, as fronteiras entre os países foram extintas, o euro nasceu como moeda forte a integrar as economias do bloco e 300 das 1 000 maiores empresas do planeta tinham sede lá. Hoje, o cenário é melancolicamente diferente. O continente vai mal em vários indicadores, incluindo investimentos, pesquisa e produtividade. Relatório elaborado por Enrico Letta, ex-primeiro-ministro da Itália, mostra que há excesso de burocracia, um mercado financeiro fragmentado e empresas pouco competitivas. Além disso, a baixíssima taxa de natalidade fará com que a população comece a cair em breve, encolhendo a força de trabalho. “A inflação elevada nos últimos anos e a recessão durante a pandemia pioraram uma frustração que já era latente”, afirma Fredrik Erixon, do Centro de Política Econômica Internacional. Na eleição do Parlamento Europeu, o descontentamento deu seu recado: ou os governos se mexem ou, logo, logo, a Europa terá outra cara.
Publicado em VEJA de 14 de junho de 2024, edição nº 2897