O tempo, entre outros fatores, conspira contra Charles III, o novo soberano do Reino Unido e outros territórios. Sua mãe, Elizabeth II, foi princesa durante quinze anos e depois teve sete décadas para dominar os rituais, diplomar-se na arte de engolir sapos, projetar uma imagem de dignidade a toda prova e conquistar a admiração e o respeito dos súditos. Charles, ao contrário, passou 73 anos sendo príncipe e agora precisa provar, em curto prazo, que possui estofo para suceder à mãe na preservação de uma monarquia que faz pouco ou nenhum sentido no mundo moderno.
Por obra e graça de Elizabeth II, 62% dos britânicos aprovam a instituição atualmente, mas a base de sustentação desse apoio está fincada na credibilidade do monarca — e a de Charles, convenhamos, não é lá essas coisas. “Esta é a maior encruzilhada da realeza desde a abdicação do rei Edward VIII, em 1936”, diz Dane Kennedy, autor de Guerras da História Imperial: Debatendo o Império Britânico. Com o país passando por grave crise econômica, um punhado de nações da coroa querendo sair da linha e fatias do próprio Reino Unido em viés de desunião, essa era começa cercada de dúvidas sobre suas chances de sucesso.
Charles III fez questão de chegar afirmando que sabe a diferença entre ser príncipe herdeiro e ser rei. “Não vou poder mais dedicar tanto do meu tempo e energia às obras filantrópicas e a questões que me interessam profundamente”, disse no primeiro discurso como soberano. Em outras palavras, deixará de se envolver pessoalmente na arrecadação de doações para sua fundação, para alívio dos reais assessores — recentemente, revelou-se que aceitou sacolas de dinheiro vivo de um xeque do Catar e soprou boas palavras na concessão de um título nobiliárquico a um potentado saudita, gesto que coincidiu com a obtenção de polpudo cheque para a caridade. Igualmente, vai ter de ser muito mais contido ao comentar assuntos que lhe são caros, como sustentabilidade, preservação de estilos arquitetônicos e recomendação de medicinas alternativas, todas opiniões possivelmente meritórias, mas que agora precisará guardar para si. O rei, ensinou Elizabeth II, não emite opiniões.
Casado há dezessete anos com Camilla, Charles em boa parte deixou para trás o tumultuado casamento com Diana e as acusações de infidelidade mútua — sendo a dele justamente com a mulher que viria a se tornar rainha consorte. Durante muito tempo a amante execrada pelos britânicos, Camilla se transformou em duquesa da Cornualha discreta, amável e pé no chão, contribuindo para a superação do escândalo. Mas sumir da memória coletiva ele não sumiu, nem sumirá. Lição aprendida, o novo rei não pronunciou palavra (em público, ao menos) quando o caçula Harry resolveu deixar de ser royal e lançar farpas sobre as falhas paternas. Tampouco falou bem ou mal do irmão Andrew, enroscado numa rede de sexo com adolescentes. Pelo contrário, acatou a demonstração de união familiar no roteiro dos funerais de Elizabeth II, aprovado por ela mesma, e compartilhou as cerimônias com os dois.
Fora do palácio, Charles tem pela frente a perspectiva de um novo desmembramento do reino. Dos 56 países-membros da Commonwealth, a associação formada principalmente por ex-colônias que Elizabeth II fundou e comandou, catorze permanecem monarquias constitucionais das quais ela era soberana apenas cerimonial, mas soberana. O título passou para Charles III, e junto com ele um vigoroso movimento republicano. Nem bem havia se sentado no trono e o primeiro-ministro de Antígua e Barbuda, Gaston Browne, anunciou a realização de um referendo propondo a proclamação da república em três anos. “Será o passo final do círculo de independência”, disse. Adam Bandt, líder do Partido Verde australiano, mandou condolências à família da rainha, mas observou: “Agora a Austrália tem de seguir em frente. Precisamos ser uma república”.
A primeira-ministra da Nova Zelândia, Jacinda Ardern, disse não ver o fim da monarquia em seu país no curto prazo, mas acha que isso deve acontecer “antes de eu morrer”. A ausência da respeitadíssima rainha certamente vai aquecer o já presente ímpeto republicano em Belize, Canadá, Jamaica e Bahamas. Mais significativa ainda é possível perda de dois integrantes do Reino Unido, Irlanda do Norte e Escócia — limitando os domínios reais a Inglaterra e País de Gales. Colocados em situação insustentável por seus laços com a Irlanda, de um lado, e o Brexit, de outro, os irlandeses do norte pendem para extinguir a separação da ilha em dois países. Na Escócia, por sua vez, a primeira-ministra Nicola Sturgeon lidera um partido pró-separação e já trabalha para realizar um segundo plebiscito com essa proposta (no primeiro, em 2014, o “não” venceu por meros 55%).
Apesar da falta de carisma e dos pecados do passado, Charles tem preparo para se apresentar, em todas as circunstâncias, como um modelo de estabilidade, possivelmente com algumas pitadas de personalidade própria — o que, segundo especialistas, será essencial para um reinado bem-sucedido. “Se ele simplesmente repetir o estilo de Elizabeth, estará passando a impressão de que a monarquia é inflexível e está agonizando”, alerta Eoin Devlin, diretor de estudos de história da Universidade de Cambridge. Ao mesmo tempo, vai precisar seguir os passos da mãe e se ater fielmente às regras estabelecidas, um ingrediente vital para a permanência do reino. “A força da monarquia britânica está justamente na sua pompa, mística e rituais, fatores que despertam apelo emocional e interesse”, diz Lawrence Goldman, historiador da Universidade de Oxford. Finda a longuíssima espera, o rei Charles III tem agora de mostrar a que veio. Um sufoco já se anuncia: vem aí a quinta temporada de The Crown, em novembro. E ela vai retomar a tragédia shakespeariana do casamento com Diana.
Publicado em VEJA de 21 de setembro de 2022, edição nº 2807