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Arábia Saudita se abre pela 1ª vez ao turismo como alternativa ao petróleo

O reino ditatorial que Bolsonaro visitará começa a emitir vistos para visitantes. Probleminha: o príncipe no comando é acusado de homicídio

Por Ernesto Neves Atualizado em 18 out 2019, 14h38 - Publicado em 18 out 2019, 06h00

Sol o ano inteiro, mar cristalino, cidades sagradas e ruínas milenares. Mesmo reunindo tantos requisitos de um destino internacional de primeira grandeza, a Arábia Saudita nunca figurou na rota dos turistas, por um simples motivo: fechadíssimo e ultrarreli­gioso, o país queria distância deles. Os únicos visitantes permitidos, e sob severa supervisão, eram executivos de empresas internacionais e muçulmanos na peregrinação obrigatória às cidades sagradas de Meca e Medina. A cortina de areia, no entanto, está se abrindo: o reino, que ocupa 80% do território da Península Arábica, pela primeira vez na história passou a emitir vistos a cidadãos de 49 países, entre eles os Estados Unidos, o Canadá, a maior parte da União Europeia e a China. O Brasil ainda não consta na lista, mas está tentando costurar um acordo para ingressar no rol — pleito que pode angariar simpatia a depender de como transcorrer a visita do presidente Jair Bolsonaro ao país, marcada para os dias 29 e 30 (veja a reportagem).

Os novos vistos terão validade de um a três meses e contemplam, inclusive, mulheres desacompanhadas, duas palavras que jamais caminharam juntas na rigorosamente patriarcal sociedade saudita (é claro que a regra só vale para estrangeiras). E mais: as visitantes não precisarão envolver a cabeça em um lenço e o resto do corpo em uma abaya, traje negro que vai do pescoço aos pés, para sair na rua, como acontecia até agora (mas “devem cobrir ombros e joelhos”). As mudanças integram um ambicioso pacote que tem como objetivo fazer com que a Arábia Saudita, a maior exportadora de petróleo do planeta, deixe de depender do óleo — a previsão é que as reservas sequem aos poucos e acabem em setenta anos — sem perder a fabulosa renda que ele lhe traz. Só com turismo, o reino quer que suas atrações recebam 100 milhões de visitantes por ano até 2030. A iniciativa foi arquitetada pelo príncipe herdeiro e mandachuva de fato Mohammed bin Salman, 34 anos, o MBS. Ambicioso e bem enturmado, ele transformou a capital, Riad, em ponto de peregrinação de homens de negócios e chefes de Estado em busca de investidores — caso do Brasil agora.

Para alcançar seus objetivos e fazer frente a vizinhos como Dubai e Catar, muito mais avançados na indústria do turismo, o governo saudita bombeia petrodólares sem juros (que a religião, de qualquer forma, não permite) em obras colossais, sobretudo na construção de complexos de lazer. O Projeto Mar Vermelho, uma profusão de resorts espalhados ao longo de 28 000 quilômetros quadrados de litoral, está orçado em 2,7 bilhões de dólares. Nos arredores da poeirenta Riad, outro exemplar de gigantismo começa a ser avistado naquelas areias: o Qiddiya, um bairro inteiro de parques de diversões que tem como carro-chefe uma unidade da rede americana Six Flags. No Neom, lançado pelo príncipe em pessoa, está sendo erguida uma metrópole high-tech dividida entre Arábia Saudita, Jordânia e Egito. Custo previsto do empreendimento: meio trilhão de dólares. Também estão sendo tocadas obras de infraestrutura nos diversos monumentos históricos, que vivem às moscas.

RIQUEZA - Refinaria da Aramco, alvo de atentado terrorista: os petrodólares financiam a virada na economia do reino (Ahmed Jadallah/File Photo/Reuters)

A fúria liberalizante não se estende à população com a mesma intensidade, embora haja um avanço aqui, outro ali. Adepta do wahabismo, uma interpretação radical do Islã, a Arábia Saudita deixou há mais de um ano de ser o único país do mundo onde as mulheres eram proibidas de dirigir. Agora elas podem tirar carteira de motorista — desde que com autorização dos homens da família. Alguns cinemas estão funcionando, depois de três décadas vetados. A mutaween, temida polícia religiosa, não circula mais pelos shopping centers com uma vareta na mão, repreendendo as mulheres que mostrem alguma parte do corpo ou lojistas que não fechem as portas na hora das rezas. Mas o cerco às ativistas segue firme e pelo menos uma delas está presa. “As pequenas concessões, como a autorização para dirigir, são uma falsa liberdade. Se elas desobedecem aos pais ou mesmo aos filhos, ainda podem ser processadas e punidas”, diz Omaima al Najjar, que deixou o país após receber ameaças de morte e vive como refugiada na Itália.

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A imagem de homem moderno que MBS gosta de propagar desabou há um ano, quando o jornalista saudita Jamal Kashoggi, opositor do governo, que assinava uma coluna no jornal The Washington Post, entrou na embaixada de Istambul, na Turquia, para pegar documentos e sumiu. Comprovou-se depois que fora morto e esquartejado, ao que tudo indica, a mando direto do príncipe. Em entre­vista recente ao programa 60 Minutes, da rede americana CBS, Mohammed bin Salman qualificou o crime de “hediondo” e “um erro” e negou qualquer participação, mas assumiu “total responsabilidade como líder saudita”, já que os acusados trabalhavam para o governo. Na mesma entrevista declarou, impávido, que não mantém presos políticos nem pratica tortura. Segundo relatório da Anistia Internacional, ao menos um saudita é executado pelo governo por dia; em abril foram 37 em um só dia, na maior parte xiitas acusados de ligação com o inimigo Irã. Relações homossexuais, adultério e blasfêmia também são crimes passíveis de pena de morte.

Amigo de fé do presidente americano Donald Trump, que vê na Arábia Saudita grandes oportunidades de venda de armas e negócios em geral, MBS lidera a distância uma guerra contra os houthis, grupo armado que tomou o poder no vizinho Iêmen e continua a controlar partes do país. O conflito escalou há algumas semanas, quando um mal explicado atentado feito com drones, assumido pelos houthis e atribuído ao Irã, danificou a maior de todas as refinarias da Aramco, a poderosa estatal de petróleo saudita. “As controvérsias da Arábia Saudita podem retardar sua inclusão na comunidade internacional. Mas Mohammed bin Salman sabe que o mundo tem memória curta e aposta no interesse econômico que seu país desperta”, avalia Kevin Newton, do Middle East Institute, em Washington, responsável por prestar consultoria a empresas que queiram se expandir no Golfo Pérsico. Nada como um petrodólar depois do outro.

Publicado em VEJA de 23 de outubro de 2019, edição nº 2657

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