Alta tensão: a ameaça de ampliação dos conflitos regionais no Oriente Médio
Assassinatos de lideranças terroristas em Beirute e Teerã colocam Israel na mira de ataques retaliatórios
Repetindo um roteiro que já se desenrolara em abril, o governo israelense recomendou à população estocar água e alimentos, paramédicos reforçaram o treinamento em caso de emergência nacional, hospitais traçaram planos para remover pacientes e companhias aéreas cancelaram voos para o país. Pela segunda vez desde o início da guerra na Faixa de Gaza, em 7 de outubro, paira sobre o Oriente Médio a sombra de uma iminente ofensiva do Irã, agora para vingar dois ataques: o bombardeio em Beirute, assumido pelas Forças Armadas de Israel, que matou um alto comandante do Hezbollah, a milícia libanesa apoiada pelo regime dos aiatolás, e o assassinato do líder político do Hamas, Ismail Haniyeh, em plena Teerã, horas depois de comparecer à posse do novo presidente iraniano — uma explosão que ninguém reivindicou, mas também não precisava. “A estabilidade regional depende da punição do regime sionista”, disse o porta-voz do Ministério das Relações Exteriores do país, Nasser Kanaani, reavivando a ameaça perenemente embutida nos embates regionais: a de que um ato de provocação faça transbordar o caldeirão de hostilidades, redundando em um conflito de proporções mundiais.
Ao longo da semana, uma maratona de tensas reuniões diplomáticas tentava minimizar os danos da retaliação, considerada inevitável. Em abril, depois que Israel atingiu sua embaixada na Síria, o Irã lançou mais de 300 mísseis e drones contra o inimigo — o primeiro ataque direto em décadas. Naquela ocasião, porém, a represália seguiu um planejamento montado para manter a situação sob controle: enquanto a poderosa defesa aérea de Israel interceptava quase 100% dos disparos, iranianos saíam às ruas em plena madrugada para celebrar a chuva de mísseis, e israelenses, aliviados, restauravam a confiança em sua segurança. Nitidamente, ninguém, naquele momento, queria uma ampliação do conflito. Ao que tudo indica, a mesma disposição se repete agora, mas cada fagulha tem potencial para, se não atrair o Irã — uma das grandes potências militares regionais — para o centro da guerra, convencer a cúpula do Hezbollah a partir para o tudo ou nada, o que prenunciaria uma tragédia. Calcula-se que a milícia sediada no Líbano tenha até 10 000 combatentes ativos e 20 000 reservistas, juntamente com um vasto arsenal de tanques e 150 000 foguetes de longo alcance que a torna, de acordo com o Centro de Estudos Estratégicos e Internacionais, “o protagonista não estatal mais fortemente armado do mundo”. “Israel tem condições de sustentar uma guerra contra o Irã e aliados, com ajuda dos Estados Unidos. Mas, em um primeiro momento, um ataque total do Hezbollah poderia sobrecarregar as defesas israelenses”, diz Boaz Atzili, cientista político da American University, em Washington.
Por enquanto, o esforço diplomático para conter o conflito tem dado resultado, com o empurrão fundamental do histórico de derrotas militares árabes frente a Israel — do Hezbollah inclusive. Uma guerra aberta entre os dois em 2006 matou quase 2 000 pessoas e deslocou outras 500 000, levando o líder da milícia, Hassan Nasrallah, a reconhecer posteriormente que não teria levado a luta adiante se soubesse o tamanho da sequela. “Eles temem os danos substanciais dos contra-ataques de Israel, difíceis de justificar para os civis da região”, afirma Sean Foley, autor de Os Estados Árabes do Golfo: Além do Petróleo e do Islamismo. Igual raciocínio deve permear o alcance dos atos do líder supremo iraniano Ali Khamenei, assoberbado pela insatisfação da população com frequentes cortes de energia, escassez de água, crise econômica e repressão.
Nessa linha fina de interesses, as maiores dúvidas recaem sobre as intenções do primeiro-ministro de Israel, Benjamin Netanyahu, que há dez meses ordena bombardeios e ataques terrestres na Faixa de Gaza, sem dar sinal de planos de pôr fim à operação antiterrorista. Uma pesquisa de opinião divulgada em julho revelou que 72% dos israelenses desejam sua renúncia pelas falhas na segurança durante a invasão do grupo palestino Hamas em outubro, que resultou na morte de 1 200 pessoas, mais de 5 000 feridos e 250 sequestrados. Entrincheirado na promessa de “eliminar totalmente o Hamas”, e dependente do apoio dos ultrarradicais de sua coalizão de governo (o ministro das Finanças, Bezalel Smotrich, declarou há poucos dias que matar de fome os 2 milhões de palestinos em Gaza pode ser “justificado e moral”), Netanyahu parece decidido a agir por conta própria, sem prestar contas a países aliados.
Ele é visto, inclusive, como um dos principais empecilhos a um cessar-fogo na Faixa de Gaza, onde quase 40 000 morreram desde outubro. Já existe uma estrutura para o acordo, avalizado pela ONU e todas as grandes potências: uma trégua temporária, que incluiria a libertação dos mais de 100 reféns israelenses ainda em cativeiro, depois de uma mais duradoura, para estabelecer os termos de uma nova administração no território. Haniyeh era uma voz importante nas tratativas. “Como a mediação pode ser bem-sucedida quando um dos lados assassina o negociador do outro lado?”, questionou o xeque Mohammed bin Abdulrahman Al Thani, primeiro-ministro do Catar, onde ele vivia. Mas a última palavra sempre esteve em poder de Yahya Sinwar, o comandante do Hamas dentro de Gaza, que é acusado de coordenar o ataque de outubro e que o grupo anunciou assumir agora também sua liderança geral. Entre a racionalidade da política e a insanidade dos extremismos, o Oriente Médio — e o mundo — treme a cada nova explosão.
Publicado em VEJA de 9 de agosto de 2024, edição nº 2905