Um ano depois de o novo coronavírus se espalhar pelo planeta e mudar o compasso da vida, os números da pandemia finalmente começaram a recuar com a produção e aplicação em grande escala da mais eficiente barreira contra a disseminação da Covid-19: a vacina. Saindo na frente na corrida da imunização, os países mais ricos começaram a se preparar para a sonhada revogação das restrições, uma possibilidade real assim que a população adulta estivesse quase toda vacinada. E quem não haveria de querer tomar logo suas doses e se proteger contra uma doença que já matou mais de 4 milhões de pessoas no mundo? Pois a inconcebível resposta é: muita gente. Em plena multiplicação de infecções pela variante delta, uma mutação do vírus excepcionalmente contagiosa, a taxa de imunização nos Estados Unidos — que comprou doses suficientes para atender cada americano cinco vezes — empacou em 49%. Na Europa, capacitada a proteger 70% dos adultos, ela não passa de 40%.
Desinformação, ceticismo e negacionismo são os motores que impulsionam um consistente movimento antivacina, ainda mais estridente agora que os governos anunciam medidas diversas — que vão de decretos a brindes e recompensa em dinheiro — para aumentar a adesão aos imunizantes. Nos países europeus, o chamado “passe verde”, que comprova vacinação ou teste negativo recente e já era exigido nas viagens entre fronteiras, passou a ser requisitado na entrada de restaurantes, bares, cinemas e shopping centers de Portugal, Grécia, Áustria, Irlanda e Dinamarca. Na Itália e na França, a medida demorou mais a entrar em vigor, mas foi ampliada para museus, trens e aviões. “Do que vale a liberdade de quem recusa a vacinação e amanhã infecta seu pai, sua mãe ou eu mesmo?”, questionou o presidente francês Emmanuel Macron, depois do anúncio de um acordo no Congresso para aprovar tanto a comprovação obrigatória de vacina quanto a imunização compulsória dos profissionais de saúde.
A França é o epicentro da campanha antivacina na Europa — menos da metade dos adultos compareceu aos postos. A reticência dos franceses tem raízes mais profundas do que as fantasias conspiratórias e informações falsas cultivadas pela tropa de Donald Trump e assimiladas por grupos afins mundo afora. Antes da pandemia, o país — berço de Louis Pasteur, o pai da microbiologia — já era o mais cético do mundo em relação a imunizantes em geral. No fim de 2020, só um em cada quatro franceses se dizia disposto a se vacinar. Os anti-vaxxers locais reúnem grupos de mais de 50 000 pessoas nas redes sociais e já promoveram duas grandes manifestações contra as iniciativas de Macron. A mais recente, no sábado 24, levou 160 000 às ruas de 170 cidades e terminou em confronto em Paris, com a polícia usando gás lacrimogêneo e canhões de água contra os manifestantes que gritavam “liberdade, liberdade”. A bandeira de oposição à “ditadura da vacina” também foi desfraldada em Roma, Nápoles, Turim e Milão. “Os europeus têm um longo histórico de resistência a vacinas não só por questões culturais e ideologias políticas, mas também devido à ideia de que cidadãos de nações ricas estão mais protegidos de doenças infecciosas”, explica Eliseu Waldman, epidemiologista e professor da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP).
Nos Estados Unidos, onde Joe Biden viu ruir a intenção de imunizar 70% dos americanos até 4 de julho, o Dia da Independência, as taxas de vacinação caem desde maio e 30% dos adultos fincam pé em não se proteger. A divisão, nesse caso como em tantos outros, segue a linha ideológica: 86% dos democratas receberam ao menos uma dose, ante 45% dos republicanos. A adesão é nitidamente menor, e os níveis de infecção muito maiores, nos estados conservadores — 74% da população está vacinada em Massachusetts e 42% no Alabama, por exemplo. “A insistência dos políticos conservadores em subestimar o vírus e questionar a ciência colaborou muito para a situação atual”, diz Timothy Callaghan, da Faculdade de Saúde Pública da Universidade A&M, do Texas.
Diante do avanço dos casos, o governo federal, sempre cauteloso em impor medidas de amplo alcance, resolveu agir. Joe Biden anunciou que todos os funcionários públicos sob sua órbita serão obrigados a se vacinar ou a realizar testes semanais pagos do próprio bolso. Os militares ficaram de fora, mas estão na mira da Casa Branca. Resoluções semelhantes foram decretadas pelos governadores de Nova York e da Califórnia, onde grandes cidades, como São Francisco, vão exigir comprovante de vacina na entrada de bares, restaurantes e cinemas. Em Nova York, a Prefeitura acena com 100 dólares aos que forem a seus postos se imunizar. Google, Facebook e Netflix, entre outras empresas, só permitirão a volta ao trabalho presencial de quem estiver vacinado. Mais de 600 universidades exigem o mesmo de alunos e funcionários e algumas estão premiando quem se protege com bolsas de estudo.
Parcerias de prefeituras e empresas distribuem passagens de metrô e descontos em supermercados àqueles que tomarem suas doses. Iniciativas em tom de marketing oferecem, na saída dos postos de vacinação, cerveja e até cigarros de maconha, em estados onde a droga foi legalizada. “Nos Estados Unidos, a maior parte das políticas é decidida localmente, o que dificulta os passes sanitários”, diz o vacinologista Peter Hotez. A mutação delta, identificada na Índia em outubro de 2020, já é responsável por 85% dos casos nos Estados Unidos e 68% na Europa (no Brasil foram registradas 169 infecções). As doses aplicadas seguem eficazes na prevenção de casos graves e mortes, mas podem perder força. “Em um momento excepcional como este, tomar a decisão de se imunizar é mais do que um cuidado pessoal, é um ato de proteção à comunidade”, diz o epidemiologista Waldman. Fica o alerta, crucial para o futuro do planeta.
Publicado em VEJA de 4 de agosto de 2021, edição nº 2749