Uma imensidão de terra que abriga cartões-postais em série, cidades que oferecem uma experiência urbana organizada e renda per capita três vezes superior à média global. Bem-vindo ao Canadá, país que desde os primórdios se constituiu de gente que aportava naquelas bandas frias do planeta atrás de riquezas e vida nova — a começar pelos vikings, por volta dos anos 1000, seguidos de ingleses, portugueses e franceses, no século XVI. As levas vindas de fora nunca cessaram, estimuladas por políticas que, a partir dos anos 1960, foram estabelecidas para cumprir com o eterno desafio local de ocupar os grandes vazios no território que dá aos canadenses o segundo lugar entre as maiores nações do planeta, atrás apenas da Rússia. Pois o xadrez ficou ainda mais complexo agora, com os ventos demográficos que vêm derrubando as taxas de natalidade — enquanto a população de 38 milhões de habitantes envelhece — e escasseando a cada ano a fatia das pessoas em idade produtiva.
Acendeu-se então a luz amarela, e o governo encabeçado pelo liberal Justin Trudeau anunciou recentemente a mais radical de todas as políticas de atração de imigrantes da história do Canadá. “Olha, pessoal, é simples. Precisamos de mais gente”, resumiu o ministro Sean Fraser, à frente da pasta da Imigração. A ideia é preencher lacunas em diversos setores e níveis da cadeia produtiva, onde faltam cérebros em áreas como tecnologia da informação e finanças, mas também trazer motoristas de caminhão, operadores de equipamentos pesados, profissionais para a hotelaria e auxiliares de enfermagem — uma mescla de qualificações que difere das iniciativas anteriores. Com tão amplo leque, a meta é atrair 500 000 estrangeiros anualmente pelo menos até 2025, o que vai tornar os atuais números ainda mais superlativos. Hoje, 25% dos habitantes de lá vieram de fora. Nenhum país do G7, o clube dos mais ricos, apresenta proporção parecida — nos Estados Unidos, conhecido caldeirão de nacionalidades (o melting pot), ela é quase a metade, 14%.
A multidão grisalha avança rapidamente mundo afora. Segundo estimativas da ONU, 61 países observarão declínio de habitantes até 2050, incluindo o Brasil. A situação é particularmente preocupante entre os mais desenvolvidos, que já se descolaram há tempos da chamada taxa de reposição — aquela de dois filhos por casal, na qual não há encolhimento populacional. Nem todos, porém, são afeitos à estratégia de atrair estrangeiros, por enraizadas questões culturais. “Em geral, países mais homogêneos em termos raciais, como Japão, Coreia do Sul e Taiwan, não cultivam a imigração”, explica o demógrafo José Eustáquio. Eles têm procurado suprir a necessidade de mão de obra implantando uma fórmula de mais investimentos em tecnologia e educação, para obter ganhos de produtividade, e de estímulo à permanência dos mais velhos no mercado de trabalho.
No caso do Canadá, além do caldo cultural simpático ao ingresso dos que vêm de fora, aliado à constante demanda por mais gente, há ainda nos dias de hoje um ambiente político favorável. Até o Partido Conservador, da oposição, apoia a enfática iniciativa de Trudeau. “Não importa se seu nome é Martin ou Mohamed, você pode realizar seus sonhos neste país”, discursou o recém-eleito líder conservador Pierre Poilievre, cuja esposa, aliás, veio da Venezuela. Nos Estados Unidos, o eldorado por excelência de quem busca condições melhores, o assunto é um espinhoso enrosco para o governo Joe Biden, que ainda não acertou uma política para lidar com as aglomerações que se formam na fronteira com o México e vive desafiado por republicanos que despacham os que chegam em estados comandados por eles, como o Texas, para domínios democratas, como Nova York. Mesmo assim, 1 milhão de imigrantes são absorvidos em solo americano todos os anos. Na Europa, palco de dramáticas crises migratórias e manifestações de xenofobia, as portas têm sido mais abertas, é verdade, mas só para a camada mais qualificada dos que querem vir.
Ainda que o Canadá tenha facilitado o afluxo de estrangeiros — a burocracia se descomplicou e um visto de residência pode levar seis meses no lugar dos dois anos de antes —, nunca é simples se estabelecer em uma terra nova. Uma pesquisa conduzida pela Associação de Estudos Canadenses mostra que, embora prevaleça uma boa vontade com os que ali aportam, quase metade dos canadenses considera elevada a meta do governo e três de cada quatro se dizem preocupados em algum grau com os efeitos do novo plano sobre os serviços (educação, saúde) e o mercado imobiliário. Habitação, por sinal, é um tema sensível, já que os preços escalaram às alturas com o incentivo aos investimentos estrangeiros no setor, capitaneados pelo capital chinês. Em cidades como Toronto e Vancouver, os valores dispararam, tanto para compra quanto para aluguel. “Se os imigrantes estão aí para ser um alívio para nossos gargalos econômicos e demográficos, eles devem ser capazes de encontrar uma boa casa e arranjar emprego”, alerta a pesquisadora Rupa Banerjee, da Toronto Metropolitan University.
Os recém-chegados, que recebem majoritariamente visto de residência e não de cidadania, não precisam ter arranjado um emprego antes de embarcar, embora ajude no processo. E, ainda que não seja mais um pré-requisito, uma boa formação certamente facilita as coisas. “Já tinha graduação no Brasil por uma ótima faculdade, então o processo burocrático foi mais rápido e fácil”, conta o carioca Bruno Motta, que ingressou pelo programa Express Entry (justamente para os “altamente qualificados”) e hoje trabalha como gerente de projetos em uma multinacional na capital Ottawa. A mistura de nacionalidades que adotam o Canadá é liderada por indianos (30%), seguida de chineses — os brasileiros aparecem em 7º lugar. E eles vão se encaixando no convidativo mercado de trabalho canadense, que registrou mais de 1 milhão de postos vagos no cenário pós-pandemia. “A imigração tem sido uma eficiente resposta à nova onda demográfica”, avalia Rupa Banerjee. São tempos de oportunidade para quem se desloca em busca de vida melhor.
Publicado em VEJA de 22 de fevereiro de 2023, edição nº 2829