“Estava na casa do meu pai no Espírito Santo quando vi o primeiro dia da guerra na Ucrânia. Como gerente de eventos esportivos, já havia trabalhado com esporte comunitário em situações de pós-conflito no Líbano, Palestina e Filipinas. Eu não tinha nenhuma relação prévia com os ucranianos, não conhecia ninguém lá, mas as imagens daquelas famílias desnorteadas, abandonado suas casas às pressas, fugindo da guerra que estava apenas começando, me tocaram. Precisava ajudar aquelas pessoas de alguma forma. Peguei algumas economias e comprei uma passagem para Varsóvia, sem saber direito o que ia fazer. Lá, atravessei a fronteira a pé. Um policial me disse que não era uma decisão muito inteligente. Não me importei e segui em frente. Descobri que o policial tinha razão, mas o que vi me impressionou ainda mais: mulheres em fuga que deixaram maridos e filhos homens para trás, idosos e crianças que não entendiam direito o que estava acontecendo. O frio era absurdo e muitos não conseguiam chegar à fronteira. Vi que poderia ajudar.
Retirar refugiados não é uma operação fácil: eu passo quase um dia inteiro na fila para encher o tanque do carro e gasto cerca de dezessete horas para entrar na Ucrânia com mantimentos e medicamentos doados por entidades filantrópicas e voltar para a Polônia com o carro cheio de refugiados. Até aparelho de raio-X para um hospital em uma pequena vila ucraniana eu levei. Desde que cheguei, em março, já estive em 22 cidades e retirei 78 pessoas no carro que aluguei. Em uma de nossas viagens, éramos dez pessoas no mesmo carro, sendo cinco crianças. Não falo ucraniano nem russo. Faço tudo com um aplicativo de celular que traduz minhas conversas. Em postos de controle não é permitido usar telefone e preciso me virar. Certa vez chorei quando um pai entregou sua esposa e os três filhos e voltou para lutar pela Ucrânia. Em outra ocasião, em Lviv, um homem deixou a filha e o tradutor do celular registrou o que ele disse: ‘Não conheço vocês, não sei quem vocês são, mas preciso confiar a vida da minha filha a vocês’. Tudo parece um filme, só que é de verdade.
Já tive um burnout e voltei temporariamente ao Brasil. Recuperado, retornei à Ucrânia para continuar o trabalho. Não me vejo como herói, embora saiba que talvez minha ajuda tenha sido a única oportunidade de muitas pessoas de escaparem dos efeitos da guerra. Testemunhei o rastro de destruição deixado pelos russos. Estive em Bucha dias depois do massacre que deixou corpos de civis abandonados pelas ruas. As cápsulas das balas ainda estavam espalhadas pelo chão. Andando com uma câmera acoplada no carro, gravamos, eu e um amigo, imagens da destruição: carros explodidos, motoristas alvejados por tiros enquanto trafegavam, inclusive veículos de ajuda humanitária. Senti o cheiro da morte. Vi a guerra em seu estado mais puro, cruel e covarde.
Os relatos são estarrecedores. Idosos que não conseguiram fugir descrevem estupros de mulheres de suas próprias famílias. A guerra prova a irracionalidade humana. Vi corpos de pessoas que morreram sem ter culpa alguma pelo conflito. Crianças que tiveram casas saqueadas um dia me perguntaram se eu não podia dar a elas um brinquedo. Dias depois, na rua em que os corpos estavam espalhados, eu e cinco crianças andamos de skate juntos. Imagine a brutalidade psicológica com que os sobreviventes são obrigados a conviver. No trajeto até a fronteira, poderíamos ter sido atingidos por bombas despejadas nas estradas. Tentamos não pensar nisso. Para mim, não importa a questão política por trás do conflito. Se um russo bater hoje à minha porta, vou socorrê-lo. Meu objetivo é ajudar seres humanos.”
Alysson Vitali em depoimento dado a Laryssa Borges
Publicado em VEJA de 25 de maio de 2022, edição nº 2790