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A guerra paralela

Aumenta a pressão sobre Maduro, que ainda resiste. No pano de fundo, Rússia e Estados Unidos, os eternos rivais, mexem as peças no tabuleiro venezuelano

Por Leandro Resende, de Caracas, e Katia Mello
Atualizado em 3 Maio 2019, 15h55 - Publicado em 3 Maio 2019, 07h00

Fumaça de gás lacrimogêneo, barulho de tiros, correria, medo, veículos incendiados, explosões de coquetéis molotov, veículos blindados, feridos, o som de coturnos batendo no asfalto. O cenário que a reportagem de VEJA encontrou em Caracas nos últimos dias era de um país em convulsão, mais uma vez. Vista de fora, a semana foi uma frenética sequência de acontecimentos acelerados. Para os personagens que se movimentam no tabuleiro, porém, houve planejamento de parte a parte. Juan Guaidó, o autoproclamado presidente interino que conta com o apoio dos Estados Unidos de Donald Trump, levou a população às ruas e abriu nova frente contra o regime; Nicolás Maduro, que se diz presidente de direito com o aval da Rússia de Vladimir Putin, cercou-se de militares e reagiu com a truculência habitual. Economicamente arrasada, mas dona das maiores reservas comprovadas de petróleo do mundo, a Venezuela vive um drama interno — o cai não cai do chavismo — que extrapola suas fronteiras na guerra paralela entre americanos e russos para fincar o país em sua área de influência.

O primeiro movimento partiu de Guaidó. Na terça-feira 30, ele apareceu em vídeo, em uma base militar, conclamando seus apoiadores para o início da marcha final contra Maduro, que reagiu colocando as tropas na rua e os generais na TV, para reiterar que permaneciam fiéis ao chavismo. Os dois lados convocaram manifestações monumentais para o dia seguinte, 1º de maio. “Será a maior demonstração já vista no país”, prometeu Guaidó. “Máxima mobilização popular para garantir a vitória da paz”, bradou Maduro. E, no Dia do Trabalho, Caracas amanheceu coberta de vermelho (a cor do governo) e de azul (a da oposição). Dormiria imersa na fumaça ardida do gás lacrimogêneo lançado contra os oposicionistas.

Sabia-se que Guaidó preparava uma mobilização popular para o feriado, mas ele decidiu antecipá-la em um dia e surpreendeu seus apoiadores fazendo uma gravação na base aérea de La Carlota, com soldados em volta e acompanhado de alguém que havia muito não se via: Leopoldo López, o principal dirigente oposicionista do país e seu mentor político, que estava em prisão domiciliar desde 2017. Como ele tinha ido parar ali? Informou-se que fora liberado às 6 da manhã pelos guardas do temido serviço secreto, o Sebin, postados na sua casa. Por ordem de quem? Segundo rumor não confirmado, do próprio chefe da Sebin, Manuel Figuera, que estaria preso por causa disso. A população festejou: os militares, peça essencial de sustentação de Maduro, pareciam estar finalmente mudando de lado. Em Washington, o secretário de Estado, Mike Pompeo, e o assessor militar da Casa Branca, John Bolton, reforçaram o apoio a Guaidó. Trump tuitou: “Estou monitorando de perto a situação. Os Estados Unidos estão com o povo da Venezuela”.

PUPILO E MESTRE - Guaidó (à esq.) ao lado de seu mentor, Leopoldo López: convocação de greves (Manaure Quintero/Reuters)

Manifestantes seguiram para La Carlota, na Zona Leste de Caracas, o trecho mais anti-Maduro da capital. A repressão não demorou e, no momento mais tenso, um blindado da Guarda Nacional atropelou uma pessoa, imagem gravada e veiculada em todo o mundo. Apoiadores de Maduro e Guaidó confrontaram-se em várias cidades. Em frente ao Palácio de Miraflores, no centro chavista, apoiadores aplaudiam o governo. À tarde, o vento de otimismo que empurrava as hostes oposicionistas perdeu força. O chefe do Es­tado-­Maior das Forças Armadas, José Ornela, e o ministro da Defesa, Vladimir Padrino, entre outros líderes militares, prestaram publicamente lealdade a Maduro. López pediu asilo, primeiro na embaixada do Chile, depois na da Espanha, que o acolheu com a família. Embora fragilizado, o chavismo permanecia no poder.

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O americano Bolton contou à Fox News, a emissora amiga dos republicanos, que pela manhã Maduro tinha um avião a postos, na pista do aeroporto de Caracas, para fugir para Cuba, mas foi dissuadido pela Rússia. Também revelou que “três figuras do regime Maduro que estiveram conversando com a oposição nos últimos três meses” haviam refugado na hora H. Deu nomes, inclusive: o ministro Padrino, da Defesa; Iván Rafael Hernández, chefe da contrainteligência; e Maikel Moreno, presidente da Suprema Corte. Para alguns analistas, Bolton blefou com intenção de espalhar a discórdia na cúpula venezuelana. Para outros, as conversas podem mesmo ter acontecido, com o conhecimento de Maduro. O fato é que a mudança de lado dos militares continuou a ser apenas uma quimera. Ainda assim, a mobilização pró-Guaidó encheu a Praça Altamira, seu quartel-­general, no Dia do Trabalho.

VALE-TUDO – Blindado da Guarda Nacional passa por cima de opositor: quatro mortos e 130 feridos até a quinta-feira 2 (Ueslei Marcelino/Reuters)

Logo ao sair do Aeroporto Simón Bolívar, a reportagem de VEJA encontrou os primeiros bloqueios, com militares portando fuzis. Na Praça Altamira e nos arredores da base de La Carlota, o movimento era intenso. Motociclistas cruzavam as pistas, ora carregando pedras, gasolina e coquetéis molotov, ora transportando feridos. Por volta das 17 horas, a repressão intensificou-se e a multidão, em correria, dispersou-se pelas ruas vizinhas, abrigando-se nas casas em volta. Em uma delas, VEJA encontrou o bancário Jesús San, de 30 anos, que trazia nas costas as marcas das balas de borracha que o atingiram ao tentar escapar da confusão. “Fizeram uma emboscada e começaram a disparar. Só consegui correr”, relatou, enquanto era atendido por uma voluntária. Para Jesús San, Guaidó é “a última esperança”. “É o que temos”, resumiu. Segundo a oposição, entre terça e quinta-­feira houve 397 manifestações na Venezuela contra o governo de Maduro, com saldo de quatro mortos, 130 feridos e 205 detidos.

Na noite anterior à divulgação do vídeo-convocação de Guaidó, o chanceler brasileiro, Ernesto Araújo, esteve em Washington com Pompeo e Bolton para discutir a situação na Venezuela. O encontro se encaixa no papel que os americanos gostariam de atribuir ao Brasil, de liderança no suporte — militar, se necessário — do bloco sul-americano a um novo governo. Na manhã seguinte, com os protestos já em curso no país vizinho, Araújo reuniu-se no Planalto com o presidente Jair Bolsonaro e expôs a convicção americana de que Maduro se preparava para ir embora e os militares se dispunham a aderir à oposição. Os generais presentes — o vice Hamilton Mourão e os ministros Fernando Azevedo (Defesa) e Augusto Heleno (Segurança Institucional) — manifestaram ceticismo, com base em conversas com fontes próprias. Optou-se então por aguardar os acontecimentos, e a intervenção militar foi descartada. “Não existe possibilidade”, disse Mourão.

CONTRA-ATAQUE –  Maduro, com militares, na quinta 2: exibindo publicamente o apoio decisivo para se manter no poder (Miraflores Palace/Reuters)

O tema rendeu mais um bate-tuíte entre Bolsonaro e o presidente da Câmara, Rodrigo Maia. “Qualquer hipótese (de intervenção) será decidida EXCLUSIVAMENTE pelo presidente da República, ouvindo o Conselho de Defesa Nacional”, cravou Bolsonaro, com todas as maiúsculas. Maia logo corrigiu: “É importante lembrar que os artigos (…) da Constituição Federal precisam ser respeitados”. Traduzindo: a matéria tem de passar pelo Congresso e, portanto, não depende “exclusivamente” do presidente. “A ala moderada do governo é a dos militares. Quem anda mais afoito é Bolsonaro, porque atende a outras pressões do Itamaraty”, analisa Carlos Melo, cientista político e professor do Insper. O governo anunciou ainda ter concedido asilo a 25 militares venezuelanos de baixa patente, provavelmente os mesmos que aparecem acompanhando Guaidó no vídeo. O grupo, no entanto, estava tendo dificuldade para chegar ao prédio da embaixada brasileira em Caracas.

Na mesma movimentada terça-feira 30, o deputado Eduardo Bolsonaro (PSL-SP), influenciador-mor da República para assuntos externos, estava em Roraima — por pura coincidência, segundo afirmou — e se encontrou com imigrantes venezuelanos. “Ele é muito bem informado. Não digo que tenha antecipado os fatos, mas certamente tinha informações”, diz Melo. De lá o deputado ainda passou por Pacaraima, na fronteira, porta de entrada das levas de refugiados venezuelanos que fogem da fome e da miséria. Mesmo estando a fronteira oficialmente fechada há dois meses, a Polícia Federal registrou no dia 1º a entrada de 850 venezuelanos no Brasil, bem acima da média diária de 250.
A tensão na Venezuela reedita na América do Sul a disputa geopolítica, herdada da Guerra Fria, entre Moscou e Washington, agora tendo a China como coadjuvante. Com reservas estimadas em 302 bilhões de barris, a Venezuela é o país mais rico do mundo em petróleo — o que sempre atiça a cobiça mundial. Desde o começo do ano, quando os EUA apoiaram a autoposse de Guaidó e suspenderam a compra de petróleo venezuelano, o governo de Maduro perdeu sua derradeira fonte de dinheiro vivo e se tornou mais dependente ainda do crédito russo e chinês. Os dois países recebem diariamente 450 000 barris da Venezuela, como pagamento de empréstimos. O maior credor é a China: 62 bilhões de dólares. A dívida com a Rússia alcança 25 bilhões. Moscou, além disso, voltou a suprir a Venezuela com equipamentos e assessores militares desde que a crise se agravou (as remessas tinham minguado por causa da desesperadora falta de recursos do país).

Na atual conjuntura, qualquer perspectiva de deposição de Maduro passa por negociações com os dois países sobre como recuperar os recursos investidos. Esse seria apenas um dos problemas do governo pós-bolivariano. Ele teria também de lidar com a cúpula militar corrupta — que almeja nada menos que anistia total —, controlar as bem armadas milícias populares chavistas e, em paralelo, ressuscitar a economia. Na quinta-­feira 2, os dois presidentes da Venezuela, cada um em seu lado do ringue, buscavam meios de se fortalecer e ganhar tempo. Guaidó conclamou a população a manter mobilização diária, e convocou greves em série. Maduro, por sua vez, propôs um “diálogo nacional” para discutir os “erros” de sua gestão e marchou na capital com milhares de soldados, prometendo combater “qualquer traidor, qualquer golpista”. “Não vejo Guaidó ou Maduro afrouxando suas posições no curto prazo”, arrisca Socorro Ramírez, cientista política da Universidade Nacional da Colômbia. A qualquer momento, um pode ser preso e o outro, deposto. No xadrez venezuelano, ninguém tem certeza do dia de amanhã.

Publicado em VEJA de 8 de maio de 2019, edição nº 2633

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