Produtores unem arqueologia e genética para recriar vinhos extintos
O resultado ganha vida em rótulos cheios de história
Em meados da década de 1980, a centenária vinícola Torres, da Catalunha, era conhecida pela qualidade de seus vinhos especiais, como o Mas La Plana e o Reserva Real, todos elaborados com variedades francesas adaptadas ao terroir espanhol. Os rótulos estavam na rota de exportação para outros mercados e os proprietários começavam a expandir a atuação no Chile e nos Estados Unidos. Em meio a toda essa atividade, a família de vinicultores percebeu o potencial de valorizar e explorar as castas de uvas regionais, pouquíssimo reconhecidas e relegadas ao esquecimento. No trabalho que envolveu não só entendidos da bebida, mas também cientistas, algumas espécies, de tão incomuns, tiveram que ser literalmente levadas ao laboratório. Nesse esforço, uvas diferentes puderam ser catalogadas pela primeira vez e exemplares que sumiram após uma praga que devastou os vinhedos europeus no século XIX foram resgatadas. A recompensa do longo processo foi a reedição de vinhos extintos, que renascem graças a um movimento que alia arqueologia a modernas análises genéticas.
As primeiras castas recuperadas pela Torres foram incorporadas ao blend de Grans Muralles no fim dos anos 1990. Outros rótulos vieram, como o Clos Ancestral, que agora chega ao Brasil. Desde que começou o projeto, por sugestão do professor de enologia francês Denis Boubals, a vinícola catalã já identificou mais de 52 variedades antigas, embora nem todas sejam próprias para a produção da bebida. “No início, era apenas uma curiosidade, um projeto quase filantrópico de recuperação das vinhas. Não pensávamos em fazer vinho a sério com elas”, afirma Miguel Torres Maczassek, representante da quinta geração que comanda a casa. Mas o cenário mudou quando se determinou a alta qualidade de algumas dessas uvas praticamente desaparecidas ou condenadas às margens dos campos cultivados.
O sistema de investigação começa com a identificação genética das frutas, passa pelo cultivo em condições controladas em estufas e por fim desemboca no plantio nos vinhedos. Aos poucos, os produtores foram percebendo como cada uma se comporta. “É um sentimento muito forte, quase como criar um filho. Temos de dar nomes a elas e saber que viverão mais do que a gente”, diz Torres Maczassek. Por enquanto, seis variedades reavivadas de tempos passados estão sendo utilizadas: garró e querol no blend de Grans Muralles, moneu, no Clos Ancestral tinto, forcada, na versão branca, e gonfaus e pirene, ainda em testes.
Os espanhóis não estão sozinhos na busca pela recuperação de uvas ancestrais. Na América do Sul, há bons exemplos vindos do Chile e da Argentina — caso da uva país, que faz parte dos primórdios da viticultura chilena. A variedade é originária da Espanha, onde era conhecida como listán pietro, e durante muito tempo foi usada apenas na elaboração de vinhos de qualidade inferior. Com conhecimento genético e agronômico mais sofisticado sobre as plantas, agora produtores renomados como a vinícola Bouchon estão investindo na casta. “O trabalho, além de técnico, é social, já que essas vinhas estão majoritariamente nas mãos de pequenos agricultores”, observa o enólogo Christian Sepúlveda, da Bouchon. Os viticultores recebem valores justos pelas uvas, transformadas em bebidas frescas que recuperam uma tradição centenária.
Na Argentina, o exemplo mais emblemático é o da variedade criolla. Trazida da Europa pelos jesuítas, a uva era matéria-prima de vinhos de missa. Com o tempo, migrou para rótulos laicos, mas sempre de qualidade inferior. A vinícola Vallisto decidiu recuperar vinhedos plantados originalmente em 1898 em Catamarca, na região noroeste do país, e lançou o rótulo Criolla. Em meio às escavações sobre o passado das frutas, os enólogos descobriram que algumas espécies são mais resistentes à seca e às variações de temperatura, além de, vez por outra, surpreenderem o paladar. Quem sabe estejam resguardados nos exemplares milenares alguns segredos para que os produtores de vinho consigam sobreviver aos efeitos deletérios das mudanças climáticas em plena marcha.
Publicado em VEJA de 19 de julho de 2023, edição nº 2850